O ano de 1928 é considerado por muitos estudiosos, em particular pela crítica Aracy Amaral, como o ponto alto da produção da pintora modernista Tarsila do Amaral (1886-1973). Foi nesse ano que ela pintou a tela inaugural do movimento antropofágico, Abaporu, hoje pertencente ao acervo do Malba de Buenos Aires. Também é de 1928 uma pintura onírica, A Lua, que sintetiza bem o dualismo dos modernistas, “presos entre a floresta e a escola”, como observou o marido e escritor Oswald de Andrade, falando da fusão do background fazendeiro de Tarsila com seu lado cosmopolita europeu. Pois é essa pintura que o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) acaba de comprar da coleção Fanny Feffer para o seu acervo, evento importante para o mundo do colecionismo.

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A venda foi intermediada pelo escritório de arte do galerista Paulo Kuczynski. O preço da obra (algo em torno de US$ 20 milhões, segundo apuração do Estado) não foi divulgado nem pelo MoMA nem pelo marchand ou pela família proprietária da obra, que está na coleção Feffer desde o fim da década de 1950. Quem a comprou foi o médico Milton Guper, que morreu em 1998 e era marido de Fanny Feffer, filha de Leon Feffer, fundador da fábrica de papel e celulose Suzano. A Lua é uma das melhores telas de Tarsila da coleção Fanny Feffer, que acumulou históricos exemplos da pintura da modernista, entre eles telas da fase social (anos 1930 em diante), como Segunda Classe (1933), retrato de uma família pobre diante de um vagão de trem – justamente da classe a que o título faz referência.

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Mas foi a produção dos anos 1920, o mais importante período de Tarsila, que o MoMA privilegiou ao organizar a primeira grande retrospectiva da pintora em Nova York, em fevereiro do ano passado, reunindo 130 obras da artista. Curadores da exposição, entre eles Luiz Pérez-Oramas, que foi também curador da Bienal de São Paulo, estiveram na cidade para escolher algumas pinturas e, segundo o galerista Paulo Kuczynski, “ficaram deslumbrados” com A Lua (110 x 110 centímetros). Por questões familiares, a tela, de formato maior que o Abaporu (85 x 73 cm), acabou excluída da mostra do MoMA.

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No entanto, A Lua já foi emprestada para outras exposições aqui no Brasil, inclusive uma mostra de Tarsila organizada pela Galeria de Arte do Sesi entre setembro e novembro de 1997. É no catálogo da referida exposição, aliás, que a crítica e curadora Sonia Salzstein define a produção dos anos 1928 e 1929 como “o segundo e último gesto inaugural de Tarsila na história da arte brasileira”, quando ela, livre dos laços que ainda a prendiam à tradição, afirma sua pintura antropofágica, sua “evasão para um mundo mágico e onírico”, como observou Salzstein.

É essa evasão que a crítica Aracy Amaral classificou como a fase Pau-Brasil Metafísico/Onírico, que inclui pinturas do histórico ano de 1928, como O Lago (também vendido pelo marchand Paulo Kuczynski), O Sono, Cidade e Sol Poente. Antes dela houve, segundo a crítica, a fase Pau-Brasil Construtivo, visível em telas como A Gare (1924), em que a influência de Léger é mais que evidente. Após viagens ao Rio e Minas e o contato com o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), o construtivismo importado foi dando lugar a linhas sinuosas e sensuais, formando paisagens interioranas de cores que antecipam em muitos anos o cromatismo pop. É o que Aracy chamou de Pau-Brasil Exótico, uma pintura que conquista os europeus e os americanos pelo contraponto da austeridade reinante acima do Equador.

Nas telas do período metafísico/onírico, Tarsila, segundo Aracy, “dá vazão a uma forma expressiva que tem mais a ver com seu universo subjetivo, de sonho, magia, despreocupada com a representação da realidade exterior”. De fato, na economia formal das paisagens de Tarsila é possível identificar um mundo mágico marcado pela transfiguração – no caso de A Lua, um cacto sugere a figura de um homem na fronteira de um território surrealista, ao qual a própria pintora se rende como manifestação de seu inconsciente, a projeção de um sonho.

A curadora do MoMA, Ann Temkin, diz que o museu “teve muita sorte em encontrar uma tela como A Lua, não disponível para empréstimo na época da retrospectiva de Tarsila”. A pintura agora faz par com um desenho de 1930 (um estudo para a composição de Figura Solitária). “Tínhamos consciência de que seria difícil encontrar uma boa pintura do período antropofágico ainda disponível”, conclui, referindo-se às telas do fim da década de 1920 que estão em coleções de museus brasileiros ou acervos privados – depois de Abaporu, a principal tela de 1928 é Urutu (O Ovo), da coleção Gilberto Chateaubriand, que está no MAM do Rio.

Outra razão para a escolha de A Lua é que a tela integrou a segunda exposição individual de Tarsila em Paris, em 1928, na Galerie Percier, inaugurando uma fase de um cromatismo explosivo, exótico. Tarsila, segundo Aracy Amaral, não se opunha a ser considerada “exótica”. Antes, observou a crítica, ela “estimulou ou se deixou levar pela etiqueta que nos identifica no exterior a partir do momento em que o Brasil buscava afirmar sua identidade cultural”. Até mesmo A Lua, uma tela, digamos, mais discreta do ponto de vista cromático, evoca uma paisagem antropofágica, recorrendo a um cacto, que também aparece em Abaporu, para amalgamar animal e vegetal num mesmo corpo surrealista, abolindo a divisão entre o mundo natural e sobrenatural.

Aquilo que Aracy chama de “onírico” pode ser visto como uma adesão ao surrealismo – e temos poucos representantes do movimento por aqui além de Ismael Nery e Maria Martins. No limiar entre a realidade e a magia, Tarsila preferiu cruzar a fronteira. Dois anos depois de A Lua, ela experimenta a hora depois do sonho. Em dificuldades financeiras, perdeu seu cargo de curadora da Pinacoteca. Em 1931, viajou para a ex-União Soviética. Trouxe na bagagem a estética do realismo socialista. Nunca mais foi a mesma.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.