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Minas de sangue

Você talvez pense que Marcelo Gomes ficou decepcionado porque Joaquim, seu belo longa sobre o alferes Joaquim José da Silva Xavier antes de se transformar no mítico Tiradentes, não recebeu nada no Festival de Berlim, em fevereiro. “Nããoooo, e eu acho que ia explodir se tivesse ganhado. Foi tudo muito intenso. Jornalistas do mundo todo se interessaram pelo filme, tive encontros com produtores estrangeiros que se revelaram parceiros eventuais. Só a exposição que o filme teve já valeu, e o melhor de tudo é que Joaquim está estreando. Muitos filmes brasileiros demoram uma vida para entrar em cartaz. Lá mesmo em Berlim consegui definir com o distribuidor Jean Tomas Bernardini, da Imovision, que o filme ia estrear na semana dos Inconfidentes.”

É o que vai ocorrer. Na quinta, 20, Joaquim estreia em salas de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Recife. E, no dia seguinte, sexta-feira, 21, o País comemora o herói “enlouquecido de liberdade”, como a ele se referiu o presidente que não foi, Tancredo Neves.

Desde que o filme foi selecionado para a competição de Berlim, Marcelo Gomes tem repetido sempre que sua motivação veio da mudança de paradigma. “De concreto, sobre Tiradentes, sabemos suas datas de nascimento e morte. O resto tudo é hipótese. Desde que o filme me foi proposto pela Wanda Filmes (NR – Produtora espanhola interessada em retratar heróis da América Latina), essa questão me apaixonou – como um soldado da Coroa portuguesa vira um rebelde dessa mesma Coroa?”

A poesia ficcional criada por Gomes recorre a um amor impossível para tentar explicar o que houve. O alferes apaixonou-se por uma escrava negra, que tinha dono. Joaquim passa a sonhar com uma promoção, que não vem. Seu sonho é juntar dinheiro para alforriar a escrava. Mas, quando Preta foge, Joaquim só a reencontra no quilombo. E tudo vai mudar para ele.

Sempre houve um caso Tiradentes na historiografia brasileira. Primeiro, como rebelde da Coroa, ele foi banido, mas, depois da República, passou a ser cultuado como ‘mártir’ da independência. “O Tiradentes que estudei na escola, na época da ditadura, era meio Jesus Cristo. Havia esse desejo de mitificação.” Não era o que lhe interessava. Joaquim “é um homem cheio de desejos, de aflições. Sua consciência despertou como uma reação à sociedade corrupta em que vivia, no século 18”.

Gomes foi estudar essa sociedade e surpreendeu-se. “Quanto mais você investiga a história do Brasil, mais se dá conta de que os problemas vêm de longe.” Desigualdade social, corrupção e violência, tudo o que hoje é tema de denúncias e manchetes da imprensa tem origem lá atrás. “A colonização portuguesa foi muito cruel. Saqueou riquezas, promoveu a escravidão e o extermínio dos índios, e deixou paradigmas de dominação que permanecem no inconsciente coletivo.”

Outra descoberta – a da importância dos negros e das sementes de liberdade que plantaram nos quilombos. É esse Brasil “pré” que Gomes coloca na tela, mas com o olho no presente, interessado no aqui e agora. Em fevereiro, em Berlim, ele já havia questionado a legitimidade do governo de Michel Temer. “As coisas só pioram, com esse retrocesso horrível que estamos vivendo. Como acreditar que tudo isso seja para construir um Brasil melhor? Só se for para poucos.”

Bode expiatório

O filme começa pelo fim, com a cabeça decepada de Tiradentes falando com o público. O Tiradentes que toma consciência e morre sonhando com o Brasil independente não pertence à elite. Há uma cena reveladora, quando ele participa de uma refeição com conspiradores. Sua falta de modos à mesa provoca olhares de censura. Tiradentes não é um deles. “Vai ser um bode expiatório”, diz Gomes.

Para se entender o Brasil atual, o diretor acredita que é preciso recuar no tempo. “Não é um problema exclusivamente brasileiro. Em toda a América Latina, existe pouca consciência do que foi o processo de colonização. A própria Europa lida mal com sua herança. Há muita falta de informação. Deu para sentir isso no festival (de Berlim), pelas perguntas que jornalistas europeus faziam. Então, não é só a história de amor impossível que confere universalidade a Joaquim. O filme também ajuda na compreensão desse momento que a Europa vive.”

Júlio Machado, que faz Joaquim, é extraordinário. O repórter até agora não se conforma que ele não tenha sido melhor ator em Berlim. É seu momento. Ator de teatro, Machado é poderoso no filme de Marcelo Gomes e também está na TV.

Foi visto em Velho Chico, vem aí em Os Dias Eram Assim, supersérie das 11 que estreia nesta segunda-feira, 17, na Globo. “Meu foco não é, nunca foi, a televisão. Me tornei artista para dar conta de vivências e experiências que só a arte proporciona. O que me motiva são desafios como esse, de dar vida a um Tiradentes que ninguém conhece. Revi Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro, que é um grande filme, com um (José) Wilker impulsivo e exaltado, mas é outra coisa. Para o meu Joaquim, usei a inquietação que carrego desde que comecei a fazer teatro.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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