A sensação foi de que tudo havia passado muito rápido. Assim que chegou ao final de uma noite quente e generosa, Paquito D’Rivera despediu-se com o seu sorriso grande deixando a Praça da Matriz cheia de reflexões pairando com a brisa que chegava do mar de Paraty. Seu show ao lado do Trio Corrente foi o último da passagem do Festival Mimo pelo litoral fluminense. Durante as três noites em que o palco ao ar livre e o altar da Igreja da Matriz estiveram tomados por artistas de cantos que poucos conhecem por aqui, o mesmo fenômeno percebido em Olinda, berço do Mimo há 11 anos, voltou a acontecer. E alguns conceitos relativos repetidos como verdades absolutas voltaram a ser demolidos a golpes de surpresa.
Seun Kuti foi a atração maior de sábado. Seu pai é Fela Kuti, o indignado nigeriano que inventou o envolvente afrobeat nos anos 1970. A música não é pop, seus compassos são quebrados, não há refrões para fazer a plateia cantar de braços erguidos e poucos, além dos seguidores bem informados da música africana, sabem, de fato, quem ele é. Um fracasso em potencial que não deveria ser colocado em praça pública para fechar uma noite, avaliaria o mercado. Isso até que o mercado visse Seun Kuti sobre um palco.
Herdeiro do sangue, do discurso anti-opressão e do grupo Egypt80 de Fela, Seun ganha dois ou três metros a mais de altura quando está lá em cima. “Esta é a música africana original”, diz, depois de repetir por vezes que o Brasil, como a Nigéria, são países cada vez mais ricos com populações cada vez mais pobres. A estética sonora do afrobeat segue regras próprias e sem contaminações, outro ponto que poderia levantar resistências. O pai de todos os instrumentos ali é o ritmo, o que poderia aproximá-lo de linguagens brasileiras, mas a riqueza de sobreposições com a qual este ritmo é trabalhado mesmo em instrumentos de cordas marca uma postura muito particular. Mesmo o soul norte-americano pode soar uma redução.
A guitarra chega a repetir um riff de quatro ou seis notas por mais de dez minutos, o baixo é colocado em contratempo com linhas que parecem impensáveis em outras mãos e os tons e a caixa da bateria são afinados no limite de seus graves, como se estivessem soando de um vinil gravado nos anos 1970. Seun dança freneticamente e, como o pai, faz intervenções de sax com frases curtas. Mais cedo ou mais tarde, a insistência daquela verdade vai vencer e criar uma atmosfera hipnótica que fará uma praça inteira dançar músicas de uma parte só que levam até 15 minutos. Assim que o show termina, a luz do palco se apaga, um DJ coloca uma trilha ambiente e as pessoas continuam pedindo por mais Seun Kuti.
A máxima de que o jazz e a música instrumental não têm apelos para segurar plateias de festivais gratuitos foi abaixo com um sopro de Paquito D’Rivera.
Cubano que mora nos Estados Unidos desde 1981, quando deixou a mulher e o filho para viver uma liberdade que a política de Fidel Castro não lhe permitia, o saxofonista e clarinetista fez uma apresentação mais brasileira do que cubana.
Estar com o Trio Corrente o deixa à vontade para isso. O pianista Fabio Torres sustenta sensibilidade com uma técnica alucinante. O baixista Paulo Paulelli brinca com os tempos, fazendo caminhos do baião para o jazz com sutileza e malandragem. E a bateria de Edu Ribeiro, elogiada por Paquito em entrevista ao Estado, dá peso e suingue sem o vício do volume nas alturas que tanto aporrinha o cubano. Foi assim que tocaram Amor até o fim (Gilberto Gil), Song for Maura (do disco de Paquito que rendeu aos parceiros um recente Grammy), Recife Blues (do brasileiro Claudio Roditi), Cebola no Frevo (do baterista Edu Ribeiro) e A Night in Tunísia (de Dizzy Gillespie).
O que paira na brisa de Paraty depois da última nota de Paquito, fechando uma temporada de Seun Kuti, Egberto Gismonti, Custódio Castelo (de Portugal), e trio Lau (da Escócia), é a sensação de que aquela viagem mexeu com outros compartimentos da alma que estão além daquele que a faria simplesmente dançar. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.