Mimo desafia a lógica de festivais, em Portugal

A ponte de Amarante sobre o Rio Tâmega viu conflitos que os portugueses do Norte gostam de contar. Construída ao lado do mosteiro de São Gonçalo, nos anos em que o próprio santo teria vivido na cidade, as cheias primeiro acabaram com suas estruturas no século 13 e, mais de 600 anos depois, as tropas francesas de Napoleão Bonaparte foram colocadas para correr a partir dali por soldados e moradores de uma improvável resistência – sim, a cena pode ser revisitada com malícia desde que a seleção de Portugal fez o mesmo com a França na conquista da Eurocopa.

A cidade de 14 mil habitantes viu agora, entre sexta e domingo, sua ponte ganhar novo significado. Nem os patrocinadores portugueses em potencial entenderam bem quando a produtora Lu Araújo chegou à região com um conceito de festival gratuito de música por aquelas terras. Eles se perguntavam “mas por que uma brasileira?”, perguntavam a ela “por que Amarante?” e não perguntavam a ninguém mas deveriam: “que música é essa que vai ocupar nossas praças e igrejas do século 17?”

A primeira edição do festival Mimo fora do Brasil, doze anos depois da estreia deste conceito em Olinda, parece ter marcado um caminho sem volta. Tom Zé comemorou 80 anos de idade tocando para uma plateia alucinada em praça pública e, no dia seguinte, conversando com fãs portugueses em um teatro de lotação esgotada. Egberto Gismonti fez ao piano um disputado concerto de abertura em frente à Igreja de São Gonçalo. Os recifenses Rafael Marques e Walter Areia, bandolim e contrabaixo acústico, abriram uma manhã com temas instrumentais de choros e frevo na praça em frente à Igreja São Pedro.

Havia mais do que um projeto musical ali, e os portugueses percebiam isso. “Essa também é música brasileira?”, perguntava um interessado de Lisboa enquanto ouvia Egberto tocar Maracatu. A grande parte das pessoas vinha do próprio Norte de Portugal e de outras cidades, como Coimbra e Lisboa, e da Espanha. Depois de mais de 40 atrações, com uma circulação calculada em 15 mil pessoas, o guitarrista Pat Metheny e o baixista Ron Carter, ainda tocariam na noite de domingo, dia 17. O Brasil volta a receber a Mimo a partir de outubro: Tiradentes e Ouro Preto (7 a 9), Paraty (14 a 16), Rio de Janeiro (11 a 13 de novembro) e Olinda (18 a 20 de novembro).

Ao investir em conceito, a Mimo parece ter atingido logo em sua primeira edição na Europa um status que produtores de marcas comerciais como Roberto Medina, do Rock in Rio, trabalham anos para conseguir. Mesmo sem conhecer todos os artistas, o público se entrega a este conceito. No interior de uma igreja, ele vai aos séculos 15 e 16 na raiz da sonoridade ibérica do violonista português Custódio Castelo. Horas depois, no Parque Ribeirinho, pode estar a dois palmos do chão, embarcando na insistência rítmica do guitarrista africano Vieux Farka Touré, filho do malinense Ali.

Uma viagem em power trio, como um Jimi Hendrix neandertal, sem refrões ou segundas partes, um jeito de pensar música que só existe na África. E terminar a noite na Lapa do Rio de Janeiro com o banho de música brasileira do bandolinista Hamilton de Holanda, que promoveu um dos melhores shows da edição com seu Baile do Almeidinha.

A experiência vivida assim, em bloco, parece transpassar suavemente a primeira camada do entretenimento e abrir espaço na alma para outras sensações. Impossível ouvir o que Tom Zé canta e não se sentir civilizatoriamente vingado, entregar-se a Egberto Gismonti e não receber em troca o desbravamento de um espaço interno ainda inexplorado. E no momento em que a mágica acontece, tudo se junta. Farka Touré poderia tocar com Hamilton de Holanda e Custódio estaria à vontade ao lado de Tom mesmo dentro de igrejas que por séculos proibiram toda e qualquer sonoridade que não consideravam sacra. A ponte sobre o Rio Tâmega tem mais uma história para contar.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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