“…E a gente sonhando”, o novo disco de Milton Nascimento, no qual ele reuniu 25 jovens músicos da mineira Três Pontas, cidade onde cresceu, está longe de ser um retorno ao passado, do tempo do Clube da Esquina. Deve-se, sim, à consciência do presente, que em Bituca, como é chamado pelos amigos, cresce exponencialmente à medida que vive novas experiências. Da amizade mais pura que viveu dentro de casa, e que pôde amplificar com sua poesia, aos momentos mais conturbados. Como numa metáfora da vida, sua música reflete essa sua capacidade de transformar o momento atual em arte, e assim, transmutar a realidade.
E essa capacidade de sentir o presente a ponto de fluir a poesia que há na vida foi despertada após Bituca ser carregado para o cinema pelo amigo Márcio Borges. “Eu cantava só, tocava baixo nos bares, mas não queria compor. O Marcinho Borges me encheu a paciência até que me levou para ver aquele o filme ‘Jules et Jim’, do Truffaut (François Truffaut). E esse filme tem um lance relacionado com a amizade que me fez lembrar, não a mesma história, mas o tipo de amizade que eu aprendi a vida inteira na casa de meus pais”, disse Bituca, em entrevista à Agência Estado, por telefone, na quinta-feira passada. “E eu cresci valorizando a amizade. Quando vi o filme, sai do cinema com o Márcio Borges, e falei: ‘vamos pra sua casa, eu vou pegar um violão, você um caderno e caneta e nós vamos compor.’ E, nessa, noite fizemos três músicas. E aí começou a vida de compositor.”
Assim como na música há o momento de cantar, deixar fluir as melodias ao balanço do ritmo, Bituca teve a mesma sensibilidade em conhecer uma nova geração de músicos de Três Pontas, parte deles ligada ao rock, parte ao jazz. Mas, mesmo em estilo diferentes, carregam a mesma essência que colocou Milton na estrada. “Quando comecei a compor, eu disse: só vou compor e cantar coisas que eu acredito. É o meu lance da minha vida. Eu presto atenção em tudo.”
Foi assim que percebeu Heitor Branquinho, que junto com o violonista Marco Elízeo, assina a música “Olhos do Mundo”, que está no novo disco, cuja letra questiona: “Quem é capaz de fechar os olhos do mundo, olhar para dentro de si?” Ou conhecer “onde as cores se misturam com facilidade”, letra da canção “Do Samba, do Jazz, do Menino e do Bueiro”, de Ismael Tiso Jr. e Miller Rabelo de Brito, que completa: “Através dos olhos, o infinito é lembrado, mas no chão a sujeira, carrega crianças, entope bueiros”, para dar passagem a um belo solo do trombone de Vittor Santos, grande músico que não está sozinho entre os veteranos. Também estão lá Wagner Tiso, que toca piano em 11 das 16 faixas, Nelson Oliveira (trompete), Widor Santiago (saxofone) e Lincoln e Ricardo Cheib (bateria e percussão).
A faixa que batiza o disco foi a segunda música completa, com letra e melodia, que Bituca fez na vida, no início dos anos 60, dividindo os vocais com o jovem Bruno Cabral, 19 anos, um dos cantores que lhe foi apresentado por Elízeo, nas gravações de “Pietá” (2002), assim como aconteceu com os cantores Ismael Tiso Jr e Paulo Francisco. É também o trenspontano Elízeo que assina com Milton a produção do novo trabalho, que apresentou ao cantor a maioria dos novos talentos de Minas. O disco é resultado da parceria da Nascimento Música, selo de Bituca, com a editora EMI Music Publishing e a gravadora EMI Music.
Os anjos e Elis – Já na canção “Amor do Céu, Amor do Mar”, Milton percebeu que na música que havia recebido de Flávio Henrique, de Belo Horizonte, caberia a letra que revela como conseguiu superar a fase mais aguda da diabetes. Cansado do hospital, Bituca resolveu ficar em casa, sob os cuidados de enfermeiros. Foi quando começou a sonhar com Elis Regina, sua maior interprete. “Mas era mais que sonho. Eu ia encontrar com ela. Ela estava fazendo um jantar, dava um jantar para todo mundo que estava lá. Eu pedia para ela cantar, ela nunca cantou. E, quando eu fiz o show ‘Tambores de Minas’, um pai chegou com neném no camarim e falou: ‘olha, meu filho falou que viu dois anjos com você no pal,co’. E foi com esse negócio da Elis e dos dois anjos eu fui melhorando.”
E voltou a fazer o que adora: nadar. Primeiro, na piscina, depois, no mar. “E comecei a mergulhar. E essa coisa foi o que me deu total restabelecimento. Então, essa música, é uma parte verdadeira da minha vida. Que no caso, Janaína (citada na canção), é o outro nome de Iemanjá. Foi o que deu e acabou nessa música, onde conto a história da minha vida.”