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Mike Leigh, o mestre realista de ‘Peterloo’

Mike Leigh surgiu no teatro e nem quando se tornou cineasta abriu mão de suas ferramentas no palco. Repetidas vezes, em Cannes, ele contou como os roteiros de alguns de seus maiores filmes – Naked/Nu, Segredos e Mentiras, pelo qual ganhou a Palma de Ouro – nasceram de trabalhos de pesquisas com seus atores, que improvisavam as cenas, criavam os diálogos e a partir daí ele ia montando a estrutura narrativa. Ao longo de décadas, o cinema de Leigh virou sinônimo de consciência (ou realismo) social. Sua obra não deixa de refletir uma história da classe operária (e da classe média) britânica. Filmes contemporâneos, no tom, na forma. Mas há outra vertente nesse cinema, o filme histórico, e por meio dele Leigh encara o próprio ofício – a arte.

Há um grande filme do diretor em cartaz. Estreou na quinta, 12. Peterloo baseia-se numa história real – um episódio polêmico da história britânica. Um massacre ocorrido na cidade de Manchester, em 1819. Vale contextualizar. No começo do século 19, a Inglaterra ressentia-se da perda de sua colônia na “América”, e o estopim havia sido a luta contra a taxação. Bem mais perto, na França, ocorrera uma revolução que ceifara cabeças da realeza, incluindo as do rei Luís XVI e da rainha Maria Antonieta. Na Manchester de 1819, houve um comício no St. Peters Field em que os oradores, com base nos impostos que os cidadãos deviam pagar, exigiram representatividade – por meio do voto. O Exército interveio contra a multidão e o ato pacífico ficou carnificina. Como a batalha de Waterloo, quando os ingleses derrotaram os franceses, ainda era próxima, o episódio ficou conhecido como Peterloo, só que agora era ingleses contra ingleses.

Leigh já havia enchido os olhos de seu público com as cores e os figurinos (e a direção de arte) de Topsy-Turvey e Sr. Turner, outros dois filmes históricos, que realizou antes. O primeiro chegou a vencer os Oscars de figurino e maquiagem. Peterloo começa agora com cenas que parecem bucólicas. A aristocracia, a classe operária – a Inglaterra já ingressara na Revolução Industrial. A situação evolui para o sangrento confronto na praça de Manchester. Como se filma um massacre? Leigh mostra. Seu olhar valoriza o detalhe sem perder a noção do todo. Mas não é só o olhar. O verbo é decisivo. A voz dos oradores, os excluídos, os fuxicos da corte. Leigh revela seu lado cartunista (que ele também foi). É um filme fortíssimo.

Em Cannes, ao apresentar Sr. Turner – com magnífica interpretação de Timothy Spall no papel-título -, Leigh já dissera que sua intenção é fazer da história (com maiúscula) algo vivo, presente e isso ele só consegue graças à contribuição de seus atores, que tornam seus filmes tão “intuitivos, emocionais, vulneráveis”, como os descreveu. Leigh, com toda justiça, é considerado um grande diretor de atores. Basta pensar em Liz Smith em Hard Labour, Alison Steadman em Abigails Party, David Thewlis em Naked, Brenda Blethyn em Segredos e Mentiras, Catrin Cartlidge e Lynda Steadman em Garotas de Futuro, Jim Broadbent em Topsy-Turvey, Imelda Staunton em O Segredo de Vera Drake ou Lesley Manville em Another Year. A lista pode prosseguir incluindo Lindsay Duncan, Lesley Sharp, Stephen Rea e Julie Walters – compondo o que um crítico já definiu como um núcleo dos mais representativos (e outstanding, verdadeiramente excepcionais) talentos britânicos.

Em Peterloo chega agora a vez de Rory Kinnear. É um daqueles atores que o público conhece sem muitas vezes identificar – seu rosto aparece com frequência na série James Bond (na pele do personagem Bill Tanner). Atualmente, está na série Years and Years, com Emma Thompson, que já se tornou objeto de culto na TV. Rory não pode nem deve ser confundido com Roy Kinnear, ator inglês que já morreu, nem Greg Kinnear, de filmes hollywoodianos como a Sabrina de Sydney Pollack.

Em Peterloo, Rory interpreta Henry Hunt. É um orador que mobiliza multidões, primeiro em Londres e depois em Manchester, no comício do Campo de St. Peter, para onde é levado por comerciantes locais. A ideia é ganhar apoio para o movimento por representatividade nas eleições. Mas isso não será fácil. O ministro do Interior persegue os radicais, a quem acusa de terem atacado a carruagem do príncipe regente, em Londres. Hunt é poderoso ao soltar a voz para encantar a multidão. É um dos prazeres de Peterloo ver e ouvir Rory Kinnear. Mas é desse encantamento que ele provoca no povo que nasce o ódio que vai alimentar a chacina.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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