Michelangelo ganha biografia monumental, por Martin Gayford

O escultor e pintor renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-1564) não era das pessoas mais agradáveis de Florença. Seus contemporâneos, como o prior da igreja de San Lorenzo, Giovan Battista Figiovanni, amigo e protetor, dizia que nem mesmo a paciência de Jó seria suficiente para aguentar o homem. Contudo, um acadêmico inglês, o professor Martin Gayford, de 63 anos, não contente com as toneladas de papel já gastas para explicar a difícil personalidade do criador do Davi – a mais conhecida escultura da Renascença italiana – resolveu, como diz, “aumentar os Alpes Apuanos dos estudos já existentes sobre Michelangelo”, fazendo da mulher Josephine sua primeira leitora e do filho Tom o compilador da bibliografia monumental (754 págs.) que acompanha a biografia Michelangelo – Uma Vida Épica, lançada pela editora Cosac Naify.

Gayford está de férias, mas concedeu uma entrevista, por telefone, ao jornal O Estado de S.Paulo, de Dubrovnik, a agradável cidade costeira da Croácia, para falar do desagradável Michelangelo, o mais celebrado de todos os artistas que pisaram sobre o planeta – e, no seu caso, também sobre as cabeças de papas e outros gênios como ele. Leonardo da Vinci, por exemplo. A rusga entre os dois ganha um capítulo (9) inteiro na biografia de Gayford.

Da Vinci era um rival mais sociável, simpático e bonito que Michelangelo, ainda que 23 anos mais velho. Cosmopolita e vocacionado cortesão, sempre andava com sua entourage caçoando de espíritos solitários como Michelangelo, que, fascinado por sua pintura, até ensaiou uma versão da Madona e o Menino com Sant’Ana, de Da Vinci, num bloco de desenho, aos 26 anos, justamente a idade em que começou a esculpir seu Davi, em 1501.

O biógrafo conta que Da Vinci passava um dia pela Piazza Santa Trinità quando reconheceu alguns amigos discutindo uma passagem de Dante, para a qual pediram sua opinião. Coincidentemente, Michelangelo passava pelo local, sendo interpelado por Da Vinci para elucidar o trecho dantesco. Furioso, por ser alvo de um cruel bullying intelectual, o escultor respondeu: “Explica-o tu, que fizeste o desenho de um cavalo para ser moldado em bronze mas foste incapaz de moldá-lo”. A amizade entre os dois jamais voltaria a ser mesma, se é que um dia foi sincera.

Da Vinci deu o troco quando o Davi de Michelangelo ficou pronto. Sugeriu que cobrissem sua nudez, que poderia ser “chocante para exibição pública”. Seu conselho foi seguindo pelos poderosos. Suas partes íntimas foram cobertas por uma guirlanda de flores douradas e assim permaneceu o gigantesco David por séculos, até que o bom senso prevalecesse. São passagens como essa que tornam a leitura da biografia escrita por Gayford recomendável para quem quiser saber como era a vida em Florença nos tempos de Maquiavel.

O acadêmico faz do tripé sexo-política-religião o sustentáculo de uma análise acurada e nada impressionista. Sua fonte principal, além da biografia de Condivi, contemporâneo de Michelangelo, foram os cinco volumes de cartas que o artista trocou com papas, amigos, poetas (Aretino, entre eles) e políticos poderosos, inclusive as mais íntimas, em que descreve, por exemplo, sua paixão por um adolescente aristocrata, o romano Tommaso de’ Cavalieri, que deveria ter entre 12 e 20 anos quando conheceu o escultor (a essa altura já na casa dos 50).

O biógrafo não trata da questão de forma escandalosa, justificando essa atração como neoplatônica. Na corte de Lourenço, o Magnífico, amor à beleza era uma experiência do bem, o que, em termos cristãos, equivale a dizer, do divino. Michelangelo dizia nas cartas que contemplar o rosto de Tommaso era como fazer sua alma ascender a Deus.

Outros críticos e historiadores discordam dele. O falecido Leo Steinberg (1920-2011), por exemplo, tentou explicar a mais enigmática das pinturas da Michelangelo, o Tondo Doni, como uma afirmação carnal de sua homossexualidade diante da Igreja, isso numa época em que gays iam parar na fogueira do dominicano Savonarola. Em tempo: O Tondo Doni (cerca de 1507), uma pintura redonda como indica o título, mostra a Sagrada Família separada de cinco gays se agarrando ao fundo, intermediados pela figura de S. João Batista, talvez na esperança de que o batismo os redima.

“Florença era liberal com relação a homossexuais até a ascensão de Savonarola, mas sabe-se pouco da vida íntima de Michelangelo, embora algumas cartas de amigos o aconselhem contra as patrulhas da noite que perseguiam os gays.” Em todo caso, a profusão de homens nus nos desenhos e na pintura da Capela Sistina – que levou um papa a compará-la a um bordel masculino – é justificada pelo biógrafo como uma obsessão de Michelangelo pelo corpo masculino como signo da perfeição. “Foi essa beleza, mais que o sexo, que o levou a interpretações eróticas como os desenhos do mito de Ganimedes.”

Seja como for, os conflitos amorosos e as fantasias sexuais dos artistas sempre aparecem como elementos indutores da criação artística nas biografias de Gayford – e ele escreveu sobre a conflituosa relação entre Van Gogh e Gauguin e a paixão de Constable por sua musa Maria Bicknell. “Não diria que Michelangelo criou todas aquelas esculturas e pinturas repletas de corpos masculinos nus para provocar a Igreja, mas por acreditar na beleza como elemento transcendental. Tanto assim, lembra o professor, que, na velhice, Michelangelo chamava aqueles homens de “bonecos”, seres destituídos de alma.

Entrando no último período de sua vida, de fato, Michelangelo recomeça a pintar – ele gostava mais de esculpir. Em 1542, sua visão do gênero humano, segundo Gayford, se transforma. No afresco Conversão de São Paulo, na capela Paulina, ele “projeta Cristo como um míssil espiritual do alto para baixo, como um raio de luz dourada na estrada de Damasco” (e, evoque-se, o rosto de São Paulo é quase um autorretrato de Michelangelo).

“Van Gogh foi crucificado na crença, mas Michelangelo não”, observa o biógrafo. Exemplo disso pode ser sua escultura Cristo Ressurecto, objeto de uma reclamação de Metello Vari, que encomendou a obra para a igreja de Santa Maria sopra Minerva. Vari não gostou do Cristo nu. Muito menos de sua expressão de indiferença diante da ressurreição. “No fim, entendi sua personalidade, a de um homem de uma ambição sem limites que só pensava na arte e um artista a serviço do poder.”

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