Não é Spoiler!

Mia Couto e José Eduardo Agualusa transformam em ficção 3 de suas peças

A parceria nasceu em 2007, quando o angolano José Eduardo Agualusa e o moçambicano Mia Couto escreveram juntos a peça Chovem Amores na Rua do Matador, a pedido do encenador e dramaturgo José Rui Martins, da companhia portuguesa Trigo Limpo.

“Descobrimos que, além da amizade, temos uma grande afinidade na escrita”, observa Agualusa que, ao lado do colega, pertence ao seleto grupo dos grandes autores em língua portuguesa. Depois daquele texto, eles produziram outros trabalhos para o palco até se imporem um novo desafio: transformar a dramaturgia em texto corrido. O resultado é O Terrorista Elegante e Outras Histórias, que a editora Tusquets lança nesta semana.

Trata-se da reunião, além da peça que empresta título ao livro, da já citada Chovem Amores e de A Caixa Preta. Textos que, se trazem traços característicos dos dois escritores como a prosa poética (Mia) e o humor à Eça de Queiroz (Agualusa), também revelam a preocupação e o engajamento a assuntos que perturbam o mundo, como guerras, terrorismo, vingança. “Uma escrita conjunta só funciona se existir intimidade e se um não enxergar o parceiro como oponente”, conta Agualusa, por telefone, desde Luanda, Angola. Para a dupla, o processo de transformar as falas das peças em texto corrido foi estimulante. “Não se trata apenas de uma transposição – o teatro se baseia principalmente nos diálogos, enquanto a prosa implica a criação de situações e vários ambientes”, completa Mia, que conversou com o Estado desde Maputo, Moçambique.

Chovem Amores na Rua do Matador partiu de uma ideia de Mia – o ponto de partida é a história de um homem que regressa à aldeia natal disposto a assassinar as mulheres da sua vida. A partir daí, nasceu naturalmente um acordo tácito: enquanto Mia cuidava das características de Baltazar Fortuna, Agualusa incumbiu-se de delinear as mulheres, pois, como o próprio admite, são femininas suas personagens mais convincentes.

A peça alcançou sucesso em Portugal, sendo apresentada em diversas cidades, o que convenceu a dupla de escritores a criar, no ano seguinte, o espetáculo A Caixa Preta, baseado no conto Eles Não São Como Nós, de Agualusa, pertencente ao livro Manual Prático de Levitação. “A versão teatral, porém, seguiu por um caminho diferente”, observa o angolano.

De fato, o conto mostra o encontro de Dona Filipinha de Carpo com um homem misterioso, que é flagrado por ela quando tentava enforcar sua filha adotiva, Carolina. Motivo: fome. Levado para a cozinha, onde toma uma sopa, o sujeito conta suas histórias de guerra, miséria e desolação. Já a peça (e o texto que figura no livro) mantém o clima de medo que cerca o ser humano, temor pela loucura, solidão e morte, mas narra uma trama diferente ao mostrar a noite em que Velha Luzinha e a sua neta, Vitória, recebem a visita de um assaltante mascarado de Lobo Mau, enquanto lá fora ecoam os sons ensurdecedores da guerra.

“A história é muito triste, mas gosto particularmente da forma como encerramos o conto”, comenta Agualusa que, ao lado do colega moçambicano, conheceu aqui o outro lado da moeda: enquanto Chovem Amores foi visto por muitas pessoas, A Caixa Preta recebeu um público mais diminuto. “Aprendemos o seguinte: quer sucesso? Escreva uma comédia. Prefere um fracasso? Faça um drama”, diverte-se Agualusa.

O processo de trabalho também foi distinto. “Para a primeira peça, estávamos cada um em seu lugar, trocando ideias por telefone e e-mail”, explica Mia. “Já para Caixa Preta, nos reunimos frente a frente, cada um em seu computador, escrevendo simultaneamente. Às vezes, um iniciava uma frase que era finalizada pelo outro. Daí a dificuldade em se apontar claramente as características de cada um nos textos.”

A afinidade, acredita ele, vem de diversos pontos de suas trajetórias que coincidem. Ambos tiveram pais que trabalharam em estradas de ferro, por exemplo. Também os dois optaram por carreiras na área de biológicas – enquanto Agualusa cursou agronomia, Mia se formou em biologia. “Trabalhamos ainda como jornalistas até nos firmarmos como escritores”, diz o moçambicano. Mas, acima de tudo, está o respeito que cada um cultiva pelo outro.

“São criaturas de fronteira”, observa bem a jornalista Anabela Mota Ribeiro, na bela entrevista que fez para o jornal português Público e cuja íntegra está no final do volume editado pela Tusquets. Ela relembra uma descrição que Mia (apelido para António Emílio) fez, certa vez, de si mesmo: “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve prosa; um homem que tem nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas na ciência; um escritor numa terra de oralidade”. Já Agualusa é um “angolano em viagem, quase sem raça. Se a raça vier do ar e do chão, é da raça dos pássaros e das árvores”.

Dessa simbiose, nascem projetos conjuntos. Questionados se o trabalho em dupla resulta em uma terceira persona, ambos vacilam na resposta. “Nunca pensei a respeito, mas não nos preocupamos em deixar marcas pessoais. É como um jogo em equipe, em que as qualidades se completam. Algo diferente, por exemplo, do que aconteceu entre Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, cujo estilo individual é perceptível”, observa Agualusa. “O escritor trabalha com ecos interiores e o desafio é evitar que isso se transforme em conflito quando em equipe. Não é nosso caso, pois nossa amizade não é um acaso”, completa Mia.

O TERRORISTA ELEGANTE E OUTRAS HISTÓRIAS

Autores: José Eduardo Agualusa e Mia Couto

Editora: Tusquets

(176 págs., R$ 41,90 papel, R$ 19,90 digital)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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