Mazzaropi foi tropa de elite do cinema brasileiro

Amacio Mazzaropi sempre foi amado e ao mesmo tempo desdenhado entre os cineastas brasileiros. No primeiro caso, levou multidões aos cinemas e ainda hoje atrai gente à frente do aparelho de TV em retrospectivas dos canais pagos. Ninguém faz retrospectiva de filmes que pessoas não querem ver. Ao mesmo tempo foi desdenhado porque é simplório e anti-intelectual e projeta imagem de um Brasil caipira. A maioria dos brasileiros é caipira, não deixa de ser e não admite que seja. Quando pode, disfarça com uma dose de mau gosto.

Em outubro Mazzaropi apareceu nos canais pagos. Mas pode ser encontrado em liquidações nas Americanas e camelôs com bom estoque de DVDs piratas. Sinal de prestígio. Algumas pessoas pedem o DVD do Jeca. É o alter ego de Mazzaropi, que não foi criado por ele, e sim por Monteiro Lobato, mas apropriado de tal forma que ninguém pede o personagem de volta. O Jeca do livro de contos Urupês nasceu na contramão do gosto intelectual. É a simplificação do caipira do Vale do Paraíba, pobre, rural, indolente, sujeito a doenças. O intelectual paulista preferia visão romântica do tipo e não gostou da versão de Lobato.

O nascimento do Jeca seria vingança, depois de um desentendimento entre Lobato e um empregado da fazenda Buquira, que ele herdou de seu avô no Vale do Paraíba. Inicialmente tinha este caráter pejorativo, preguiçoso, atrasado, envolto num ciclo do qual não conseguia sair. Depois ficou simpático. O personagem de Lobato ficou tão popular que em 1924 foi usado como Jeca Tatuzinho num programa radiofônico para disseminar noções de higiene e saneamento às crianças. Daí a expressão Jeca Tatu, cunhada em filme de Mazzaropi.

Mas o Jeca dos filmes de Mazzaropi, como o próprio cineasta, era simplório, sim, otário, não. E para avacalhar ainda mais o tipo e aprofundar sua imagem simplória e ingênua nas aparências, o Jeca do cinema se movia gingando num movimento peculiar, desengonçado e engraçado, destinado a arrancar risos. Um andar herança de circo por onde Mazzaropi deu os primeiros passos na interpretação. Jeca falava um jeito ainda mais engraçado, utilizando o caipirês, embora suas frases sempre fossem ladinas e cheias de duplo sentido. A expressão desconfiada diante dos ricos, políticos e religiosos nunca foi de reverência e sim de desafio. Os ricos pensavam que o enganava e quando iam perceber, foram enganados por ele. O povo gostava.

Jeca entrou no cinema em 1959 no filme Jeca Tatu, pelas mãos de Mazzaropi. Foi empatia imediata com o público. Os intelectuais continuavam torcendo o nariz. E Jeca se vingando deles enchendo as salas de projeção. Antes de Jeca Tatu, Mazzaropi já fazia comédias, numa carreira cinematográfica iniciada em 1952 com Sai da Frente, na Vera Cruz. Neste estúdio, fez mais dois filmes: Nadando em Dinheiro (1952) e Candinho (1953). Em seguida, por diversas produtoras, fez outros. Até Jeca Tatu, a lista inclui A Carrocinha (1955), Gato de Madame (1956), Fuzileiro do Amor (1957), O Noivo da Girafa (1958), Chico Fumaça (1958) e Chofer de Praça (1959). Em todos, o pobre desastrado, porém esperto, tenta se virar recorrendo a trejeitos de palhaço circense e driblando as durezas da vida.

A esperteza não era traço característico só de seus personagens. Mazzaropi não era bobo. Em 1958, com dificuldades para fazer filmes, vendeu a casa e carro e criou a PAM Filmes (Produções Amacio Mazzaropi), que passou a produzir as fitas do comediante. Para não ser enganado por uma rede de distribuidores e exibidores espertos, a sua produtora fazia a distribuição em todo o País e aonde a fita chegava, tinha alguém de confiança do cineasta perto da bilheteria, para evitar que os números finais não sofressem nenhuma mudança súbita provocada por dedos ágeis. Não era só o Jeca que conhecia a malandragem dos brasileiros – Mazzaropi conhecia e não vacilava.

O primeiro filme da PAM foi Chofer de Praça. Nesta altura do campeonato, Mazzaropi era dono de seu nariz, cuidava do roteiro e da produção dos filmes. Em 1961, comprou 184 alqueires da Fazenda Santa em Taubaté onde construiu seu primeiro estúdio de gravação, que produziu o primeiro filme colorido, Tristeza do Jeca, também o primeiro a ser veiculado na televisão pela Excelsior, que rendeu prêmios de melhor ator coadjuvante e melhor canção. Por falar em Excelsior, entre 1959 e 1962, convidado por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, Mazzaropi apresentou programa de variedades na emissora.

A grife do Jeca rendia frutos. Os filmes se sucediam. A Aventura de Pedro Malazartes (1959), O Vendedor de Linguiça (1961) e Casinha Pequenina (1962) arrastavam multidões aos cinemas. Mazzaropi não ficava alheio aos novos tempos e a um bom tema para suas comédias. De olho no potencial bilheteiro de uma das maiores torcidas do País, fez O Corintiano em 1966, batendo recorde de bilheteria do cinema nacional. Aliás, em filmes anteriores já aparecia a rivalidade entre Jeca (corintiano) e o italiano (palmeirense). Quando virou moda brasileiro esquiar na Argentina, fez Um Caipira em Bariloche (1973). Em 1974, fez Portugal, minha saudade. Meu Japão Brasileiro (1964) mantinha sintonia com a colônia nipônica.

O cineasta não descuidava das paródias. Candinho parodiava o livro de Voltaire. Depois vieram O Lamparina (1963), passando por Uma Pistola para Djeca (1969) e Betão Ronca Ferro (1971), que parodiavam respectivamente Lampião, Django e Beto Rockefeller, este de novela popular na TV Tupi, à época. Os títulos avacalhados também provocavam curiosidade de quem lia os cartazes externos das salas de exibição: O Jeca Macumbeiro (1975), O Jeca contra o Capeta (1976), O Jecão, um Fofoqueiro no Céu (1977), O Jeca e seu filho preto (1978), A Banda das Velhas Virgens (1979) e O Jeca e a Égua Milagrosa (1980), este o último. Ao todo, 33 filmes.

O verdadeiro último filme de Mazzaropi, Maria Tomba Homem (1981) não entra na lista porque não chegou a ser concluído. No dia 13 de junho de 1981, depois de 26 dias internado, Mazzaropi morreu de câncer na medula óssea aos 69 anos no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Foi enterrado em Pindamonhangaba, no cemitério em que seu pai Bernardo Mazzaroppi, imigrante italiano que se casara com uma portuguesa chamada Clara Ferreira, estava enterrado. Mazzaropi nunca se casou e deixou um filho adotivo, além de extenso e pouco compreendido capítulo do cinema brasileiro.

Mazzaropi poderia estar hoje enterrado num cemitério de Curitiba não fosse ser esperto e perseverante. Preocupados com o envolvimento do filho com o circo, os seus pais o mandaram para a capital paranaense, na casa do tio Domenico Mazzaroppi, para trabalhar na loja de tecidos da família na Rua XV e ver se tomava jeito. Mas ele não ficou na cidade e não tomou jeito. Aliás, entrou para o teatro e convenceu os pais a serem atores em suas peças. E por falar em ator, não se pode falar em Mazzaropi sem mencionar Geny Prado, que o acompanhou a vida inteira no papel de mulher do Jeca e de outros tipos caipiras ou não.

O crítico Rubens Ewald Filho diz à queima roupa: “Não tenho dúvida em afirmar que Mazzaropi foi o maior humorista do cinema brasileiro”. Paulo Emílio Salles Gomes diz que Mazzaropi “atinge o fundo arcaico da sociedade brasileira e de cada um de nós”. Ou seja, traduz o Jeca que habita cada um de nós. Por isso identificamos com ele e talvez por isso a repulsa dos intelectuais. O certo é que Mazzaropi, ao lado de Renato Aragão e Zé do Caixão, forma um trio de produtores originais, populares que arrebitaram o nariz dos críticos sofisticados. Não dá para ignorar.

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