Martinho da Vila, 78 anos, acaba de fazer um dos grandes discos de sua trajetória. Na mão contrária da superpopulação de instrumentos e produções que tomam as gravações de estúdio, ele tira quase tudo para fazer um álbum bastante limpo que, a princípio, seria ainda mais “intimista”, conforme conta: “Eu só queria um cavaquinho, um violão e eu mesmo fazendo um ritmo. Muito arranjo prejudica o recado que a letra deve passar, prejudica até a melodia.” E já cai em uma crítica ao samba atual: “Hoje em dia, está tudo ritmado demais. Se deixar, fazemos samba apenas para as pessoas dançarem.”
O novo disco de Martinho é De Bem Com a Vida, com músicas inéditas depois que o sambista passou nove anos sem um novo trabalho conceitual. Se estivesse nos anos em que as gravadoras imortalizavam canções, várias delas ficariam para a posteridade. Além do formato de cordas e pouca percussão, Martinho conta com parceiros de luxo (como João Donato, Jorge Mautner e Arthur Maia) e com a produção de André Midani, o lendário ex-diretor das gravadoras Philips e Warner, que estava há três décadas longe dos estúdios. “Quando o convidei, ele respondeu dizendo que estava há muito tempo sem ir para o estúdio. E que nunca havia feito um disco de samba”.
Pois o álbum que reconduz Midani ao mercado e Martinho às inéditas é inspirado. Escuta, cavaquinho!, a primeira, é fruto de uma parceria com Geraldo Carneiro, na qual o violão faz uma declaração para o cavaco. Na sequência, Choro chorão é um chorinho de 1976 e, Danadinho danado (com Zé Catimba) foi lançada pela cantora Simone em 1995.
O clássico Disritmia, lançado pelo sambista em 1974 no disco Canta Canta Minha Gente, dá dois frutos no novo repertório. O primeiro veio de um pedido da cantora Roberta Sá, chamada Amanhã é Sábado, que ela lançou em Delírio, de 2015. Roberta queria que Martinho fizesse uma canção, desta vez, para uma mulher cantar. Ele aproveitou e criou Disritmia às avessas, com a mulher chegando exausta do trabalho, pedido colo ao marido. “Estou um bagaço, amor / Preciso de colo / Preciso de colo amor, estou em bagaços”.
Com Carlinhos Vergueiro, Martinho fez Desritmou, outra cria de Disritmia. “Encontrei meu ex-amor / A mulher que eu sempre amei / E jamais deixei de amar / Mesmo estando distante / Ela me abriu os braços / Com sorrisos me saudou / Eu fiquei emocionado / Meu coração desritmou”. Mas a tal mulher se revela outra, modificada pelo tempo, e o narrador se entrega à decepção.
Aos poucos, Martinho paga uma conta que pendurou em 1975, quando lançou a música que iria lhe dar mais dores de cabeça na vida: Você Não Passa de Uma Mulher. O feminismo no início de sua militância apontou o machismo do sambista em uma letra difícil de ser defendida mesmo por quem não via maldade no sambista. “Olha a moça inteligente / Que tem no batente o trabalho mental / QI elevado e pós-graduada / Psicanalizada, intelectual / Vive à procura de um mito / Pois não se adapta a um tipo qualquer / Já fiz seu retrato, apesar do estudo / Você não passa de uma mulher (viu, mulher?) / Você não passa de uma mulher (ah, mulher)”. Hoje Martinho diz que, mesmo tendo feito a música de propósito para responder à patrulha que se armava contra os sambistas, não teria usado a expressão infeliz, “você não passa”. “A música fez muito sucesso, mas sofreu também muita resistência. Era a época de um feminismo que queria masculinizar a mulher, e eu acabei fazendo essa música para provocar mesmo. Penso hoje que, em vez de você não passa, eu deveria ter usado algo como ‘não se esqueça'”.
O samba, como o rap, sempre foi machista, lembra Martinho. “O País sempre foi, e os compositores sempre foram mais homens. Basta lembrar de Amélia (de Mario Lago)”. Além do novo disco, Martinho passou pela Bienal do Livro, na última quarta, para falar sobre seu novo romance, Barras, Vilas e Amores, sua terceira ficção dentre os 14 livros que já lançou. “Criei uma história fictícia, mas muito possível de acontecer”.
BARRAS, VILAS E AMORES.
Autor: Martinho da Vila Ed.: Sesi (216 págs., R$ 42)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.