“Marthita, por que você não consegue tocar como Danielito?” A pergunta de sua mãe Juanita ainda ressoa nos ouvidos da pianista argentina Martha Argerich, hoje com 73 anos. “Ele tocava de tudo, já tinha um repertório enorme. Por isso minha mãe vivia me provocando”. Ela não confessa, mas, tímida como era aos 8 anos e meio, devia ter muita inveja do garotinho de 7 superextrovertido, que esbanjava talento e confiança nas noitadas de música que aconteciam toda sexta-feira na casa de Ernsto Rosenthal na rua Talcahuano, 1257, em Buenos Aires. Daniel Barenboim, hoje com 71, lembra de ter se fascinado com aquela menina que tocava com fogo o Estudo em dó sustenido menor opus 10 de Chopin – “o mesmo fogo que ela mantém hoje”. Por baixo da mesa, eles costumavam brincar. “Éramos dois pequenos wunderkinder “, diz Martha.
Apesar de grandes amigos, jamais tocaram juntos na casa de Rosenthal. Só fizeram isso já nos anos 80, em Paris, quando tocaram a dois pianos e quatro mãos um repertório privilegiando Mozart e Schubert. Ao contrário, a parceria de Martha com o brasileiro Nelson Freire começou muito antes, desde que ambos se conheceram na adolescência e estudaram ao mesmo tempo em Viena, incluindo até contemporâneos como Lutoslawski.
Mas este ano os dois septuagenários geniais se reuniram numa espécie de “classical piano summit” em Berlim, na futurista Philharmonie, a sala da Filarmônica de Berlim, para um recital a dois pianos e a quatro mãos. Realizaram um velho sonho, quem sabe. Danielito, muito atrevido, concordou com a sonata a dois pianos de Mozart K. 448; mas fez questão de tocar a íntimas quatro mãos as notáveis Variações sobre um tema original em lá bemol maior, de Schubert. E, bem a seu estilo, desafiou Martha para juntos reviverem uma noitada célebre em Paris, em 1912, quando Igor Stravinsky tocou pela primeira a Sagração da Primavera na versão para piano a quatro mãos com ninguém menos do que Claude Debussy. Única diferença: a versão de Martha & Daniel é a mais tocada modernamente, para dois pianos.
A apresentação deste duo de deuses do piano clássico para uma Philharmonie lotada em 19 de abril passado foi lançada na terça-feira, 5, em CD digital, pelo selo de Daniel Barenboim, Peral Music, disponível desde ontem só para download em iTunes, por 9,99 dólares.
Tudo aqui é diferenciado. A sonata de Mozart, por exemplo. Martha já a gravou algumas vezes com outros parceiros. Desta vez, Daniel propôs uma dinâmica bem mais controlada. E o resultado é uma leitura menos arrebatada, lembra o Mozart de Alfred Brendel.
Você pode assistir o momento mais emocionante daquela noite memorável num vídeo promocional de 3 minutos e meio no site da dupla. Danielito e Marthita, ambos de cabelos brancos – os dela vastos, os dele ralos – cruzam as mãos, e ele coloca a esquerda sobre a direita dela. Um silencioso gesto de carinho segundos antes de dividirem o mesmo piano numa leitura apaixonada, a quatro mãos, das oito variações sobre um tema original em lá bemol maior de Schubert. Não é coincidência que esta seja a mais íntima de suas obras a quatro mãos, tanto quanto a obra-prima absoluta do gênero, também assinada por Schubert, a Fantasia em fá menor.
A performance mais a caráter para Marta é mesmo a Sagração. Ela jamais a tinha tocado; chegou uma semana antes do recital em Berlim só para ensaiá-la com Daniel. Não à toa é rainha em concertos tecnicamente dificílimos, como os terceiros de Rachmaninov e Prokofiev. Aqui a dissonância e o DNA percussivo do piano são assumidos por ela com uma energia tão incomum que contagia Daniel. Ele, aliás, assustou-se com Martha: “Já regi muitas vezes esta peça e sempre alguém na orquestra fica inseguro e se enrola com o ritmo. Alguém sempre erra. Martha não.
Ela simplesmente não cometeu nenhum erro. E era a primeira vez que tocou a Sagração. Fiquei espantado”. Resumindo: uma leitura que exprime toda a violência que normalmente só se vê e ouve na versão sinfônica.