O escritor Mário Vargas Llosa carregou nas tintas ao agradecer a Espanha por seu sucesso literário, quando soube ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2010. Tudo bem. Ser grato é virtude rara embora pareça tão simples. Mas é a velha história, quando a gratidão é muita, há alguma coisa além de gratidão. No caso de Llosa, mágoa. Não de Espanha. De seu país. O Peru.

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Tudo bem que a Espanha foi importante para dar ressonância internacional à obra de Llosa, da publicação, recepção, prêmios a prestígio. Latino-americanos de língua espanhola, ao contrário do brasileiro, valorizam o reconhecimento da antiga metrópole em assuntos culturais. No caso de Llosa contribuiu o fato de a sua literatura ser mais universal e menos peruana que a de conterrâneos, e também porque desde as primeiras obras ficou evidente que se estava diante de um escritor com pleno domínio narrativo. Um dos melhores do século 20. Então, a empatia é até natural. E os salamaleques idem.

Mas de onde a mágoa com o Peru? A coisa complica um pouco. Embora seja um quase europeu, de pensamento mais afinado com a oligarquia refinada e cuja literatura transcende ao Peru, Llosa é peruano. E como todo sujeito com raízes numa terra, quer vê-la num patamar mais elevado que aquele que se encontra. No caso de Llosa ele peitou um grande desafio: foi candidato a presidente da República em 1990, contra um engenheiro nipo-peruano desconhecido e populista chamado Alberto Fujimori.

Llosa, o filho culto das oligarquias, talhado para dar prestigio internacional ao Peru e escolhido para por em práticas ideias neoliberais em voga na época, perdeu para El Chino, como também chamavam Fujimori. Foi um golpe danado. Feriu de morte Llosa que até hoje não se recuperou totalmente. Fujimori teve alguns êxitos como a estabilidade macroeconômica e a derrota da guerrilha do Sendero Luminoso, mas seu governo caiu alguns anos depois sob seu autoritarismo e uma série de escândalos que o fez refugiar no Japão para não ser preso.

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Quanto a Llosa virou as costas para o Peru pelo fato de o povo peruano ter virado as costas para ele e não confiar em suas habilidades administrativas ainda não testadas em lugar algum. Coisa de gente manhosa e arrogante, mas para quem saiu em tapas com Gabriel Garcia Marquez, não dá para se espantar. Paulo Francis à época comentou que a derrota foi a melhor coisa para Llosa, que teria tempo para se dedicar à sua boa literatura e também melhor para o Peru que continuaria sem solução, estado que Francis considerava a real vocação do País.

Com estes antecedentes, as palavras gentis, até em excesso, para Espanha, adquirem outro peso, além daquele que pode ser classificado de gratidão. Não são apenas as mulheres que são vingativas. Alguns homens morrem com seus rancores. Mas, no caso de Llosa, talvez ocorra um equívoco em relação a esse episódio. Embora seja universal e compreenda até razoavelmente bem aspectos de seu país, como revela livros como Pantaleão e as Visitadoras e outros, talvez Llosa se vencesse tivesse sido apenas mais um presidente latino-americano, sem experiência e sem feitos importantes. Em parte, Francis tem razão. Os males do Peru são muito profundos.

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O Peru é um mosaico e para compreender a complexidade deste mosaico é mais útil a também boa literatura de Manuel Scorza e de José Maria Arguedas, que falam e escrevem coisas que parecem inexistirem quando se lê, por exemplo, Llosa. Esta falta de empatia com a maioria mestiça do país sugere eventual falta dos meios para o complicado resgate econômico e ainda mais complicado resgate social do Peru, uma operação tão delicada quanto àquela dos 33 mineiros chilenos retirados através de um guincho por um estreito túnel de 700 metros em direção às entranhas do continente. Para fazer o resgate é necessário conhecer o território e ter meios. Talvez Llosa fosse bem sucedido. Talvez, não.

Para conhecer o outro Peru é conveniente largar Llosa e se aproximar de seus conterrâneos Scorza e Arguedas, escritores que curiosamente não desfrutam de igual popularidade mundo afora. Por uma razão. São peruanos demais para o gosto de quem acha o Peru apenas um pedaço de terra colonizado por espanhóis e cheio de índios e índias gordos e feios. De uma gente que veio dos Incas e povos congêneres produzindo uma nação de contornos complexos, mas ainda hoje dividida entre oligarquias e milhões de almas.

O sentido de alma, que existe e não se vê, está presente no primeiro livro da pentalogia de Ranças. O primeiro livro é Redoble por Rancas – os outros são Garabombo, o Invisível; O Cavaleiro Insone, Cantar de Agapito Robles e A Tumba do Relâmpago. O título do primeiro teve bela tradução no Brasil onde saiu como Bom Dia para os Defuntos, mas seria mais fielmente traduzido como Os Sinos Dobram por Rancas. Esta expressão soa familiar. Ernest Hemingway recorreu a ela para dar título a seu livro sobre a guerra civil espanhola. No entanto, ele tirou de um sermão de John Donne, cuja finalidade era alertar que a igreja se faz com todos, assim como a Europa não pode desconsiderar um promontório – a Inglaterra – desgrudado do continente. Uma nação se faz com a inclusão e não a exclusão. Este o recado de Scorza.

Ao contrário da literatura de Llosa, que cai como xícara de chocolate quente numa mesa refinada, a de Scorza berra contra as iniquidades, cobrando justiça social no Peru, sem a qual o conceito de nação fica capenga. E injustiça é o que existe em Rancas para a perplexidade dos camponeses, um pobre povoado devastado por uma empresa americana e por próceres indiferentes. Quem vai tocar os sinos por Rancas? Esta a pergunta. O mesmo dilema é traduzido de forma ainda eloquente por Arguedas, cuja mulher Sybila era atuante do Sendero Luminoso. Um detalhe: Scorza e Arguedas têm sangue índio.

Eis o que diz Arguedas em seu poema Aos Doutores: ‘Dizem que não sabemos nada, que somos o atraso, que vão trocar nossas cabeças por outra melhor. Dizem que nosso coração tampouco convém aos novos tempos, que está cheio de temores, de lágrimas, como o da calandra, como o de um grande touro degolado, por isso inconveniente.Dizem que alguns doutores dizem isto de nossa gente, doutores que se reproduzem na terra de nossa gente, que aqui engordam e ficam amarelos. Que continuem falando se é que gostam. De que é feito meus miolos? De que é feita a carne do meu coração? Os rios correm bramindo nas profundezas.O ouro e a noite, a prata e a noite, temíveis, formam as rochas, as paredes do abismo em que o rio ecoa. Desta rocha são feitos a minha mente, meu coração, meus dedos.Que há na margem destes rios que conheças, doutor? Empunha teus binóculos, teus melhores óculos e veja, se puderes’.

É preciso responder a estas perguntas antes de ir em frente. O universal Vargas Llosa não volveu para ouvir. Foi em frente, tornouse mais um espanhol, que nunca será verdadeiramente, pois é peça emblemática da grande contradição étnica e social chamada Peru. Que continuará por muito tempo ainda um território sangrado pelo ressentimento enquanto as vozes que falam pela boca de Arguedas não forem ouvidas.

É isso. Um típico apelo do descendente dos primitivos donos da terra para o descendente dos conquistadores da terra. Scorza e Arguedas no primeiro time. Llosa no segundo. As condições de ambos não alteram a qualidade ou falta dela em suas obras. Na realidade estamos diante de três grandes escritores. Mas há algo atávico que determina o fluxo e o sentido de suas palavras entoadas. Esta, mais que as escritas, vêm do coração.