No Rio de Janeiro, os corações de quem gosta de música brasileira desandam a bater desvairados quando entra o verão desde 13 de fevereiro de 1965, quando Maria Bethânia estreou no espetáculo Opinião com sua voz rascante e agreste. No sábado,10, em que a sensação térmica bateu recorde em 2015 na Cidade Maravilhosa, não foi diferente. Ovacionada, a cantora estreou o show Abraçar e Agradecer para celebrar, à sua maneira, cinquenta anos de carreira.
Na plateia do Vivo Rio, nomes como o diretor Daniel Filho, a atriz Leona Cavalli, o poeta Antonio Cícero e o cantor e compositor Chico César viram um show em que uma Bethânia sorridente fez do palco seu quintal, com seu domínio cênico de sempre. Com direção musical assinada por Guto Graça Mello e direção e cenografia a cargo de Bia Lessa, Abraçar e Agradecer se contrapõe ao anterior Carta de Amor, concebido como resposta à polêmica de seu nunca concretizado blog com vídeos de poesia.
Agora o tom é de serenidade, mas também de afirmação como artista. Não há um conceito em Abraçar e Agradecer, mas blocos temáticos em que Bethânia evidencia suas conexões com a música, a água e o sertão. Jorge Helder (baixo e regência), João Carlos Coutinho (piano e acordeom), Paulo Dafilin (violão e viola), Marcio Mallard (violoncelo), Pantico Rocha (bateria) e Marcelo Costa (percussão) são velhos companheiros de trabalho e, junto a Pedro Franco (violão, bandolim e guitarra), dão segurança para que ela transite entre canções viscerais e dolentes sem perder seu magnetismo.
Na questão tecnológica, é seu show mais ousado. A cenografia investe em projeções de vídeos, fotos e desenhos no estrado de seu palco, reforçando a ideia das canções. Acima, apenas lustres. O figurino sóbrio dos músicos contrasta com a roupa totalmente dourada da cantora no primeiro ato. Na segunda parte, o dourado permanece com um colete vermelho de tricô por cima. É a cor de Iansã. Bethânia brilha, mas não deixa de saudar a orixá.
O primeiro ato investe na exteriorização dos sentimentos. Boa parte das músicas estava em Imitação da Vida (1997), também um show comemorativo, que celebrava os cinquenta anos de vida de Bethânia. Apesar da obviedade da escolha, ela dá seu recado. Eterno em Mim, de Caetano Veloso – compositor mais presente no repertório, com seis músicas – abre Abraçar e Agradecer e dá início a um bloco em que a cantora diz muito de si e do seu ofício. “Não há nada no mundo que possa fazer eu deixar de cantar”, anuncia. Na sequência, emenda um texto de agradecimento. “Agradeço aos amigos que gostam de mim. Apesar de mim”. Depois vêm Dona do Dom (Chico César) e Gita (Raul Seixas/ Paulo Coelho), cuja letra ela nunca havia cantado integralmente. Chegou a hora.
Há abraço e gratidão de Bethânia a compositores que têm sua carreira intimamente ligada à dela. Caetano, Chico Buarque (Tatuagem, Rosa Dos Ventos), Roberto e Erasmo Carlos (Você Não Sabe) Gonzaguinha (Começaria Tudo Outra Vez) e Sueli Costa (Todos os Lugares, parceria com Tite de Lemos). Ela nada diz sobre eles, e não é necessário. Todos estão ali.
O fecho do primeiro ato, com duração de 40 minutos, é emblemático. Rosa dos Ventos deu nome ao lendário espetáculo de 1971 dirigido por Fauzi Arap que consolidou a personalidade artística de Bethânia. “A multidão vendo atônita ainda que tarde o seu despertar”. Depois da explosão, a segunda parte chega interiorizada, com algumas músicas de Meus Quintais (2014).
Após Viramundo (Gilberto Gil/ Capinam) e Tudo De Novo (Caetano), vem um bloco sobre a água, tema que gerou dois CDs (Pirata e Mar de Sophia) e show (Dentro do Mar tem Rio). Após lembrar de forma contemplativa Dorival Caymmi linkando Doce (Roque Ferreira), que cita o compositor, à sua Oração de Mãe Menininha, vem um grande momento. Eu e a Água (Caetano) arrebata o público pela força da interpretação e pela percussão de Marcelo Costa.
O bloco do sertão é o mais extenso. Nele, há músicas inéditas na voz da cantora e outras criadas especialmente para o show. Eu, a Viola e Deus (Rolando Boldrin) e Criação (Chico Lobo) são interpretadas apenas com a viola de Paulo Dafilin. Xavante (Chico César) e Povos do Brasil (Leandro Fregonesi), de Meus Quintais, crescem no palco.
Paris é uma das grandes paixões da cantora, que de forma sutil saúda a cidade na versão de Nelson Motta para música de Charles Trenet (Eu Te Desejo Amor) e na escolha de Non, Je Ne Regrette Rien (Michael Vaucaire/ Charles Dumont). Em bom português, Bethânia diz não se arrepender de nada, com recepção efusiva da plateia. A inédita Silêncio (Flávia Wenceslau) fecha o segundo ato. Bethânia não quer barulho, mas há quem grite mesmo assim. Ela não se abala.
Para o bis, uma bela surpresa. Brincar de Viver (Guilherme Arantes/ Jon Lucien), que ela nunca havia cantado em shows, e o clássico O Que é, o Que é? (Gonzaguinha). Abraçar e Agradecer é show em que Bethânia olha pra trás sem arrependimentos, mas vê no silêncio e na tranquilidade seu futuro. O show passa por São Paulo nos dias 14, 15, 21 e 22 de março. Os ingressos já estão à venda.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.