Com um bonito vestido lilás, cabelos brancos e a expressão que guarda muito do humor que a caracteriza, Maria Alice Vergueiro entra no palco apoiada em dois parceiros. Ovação. Vai começar Why The Horse? (Por que o cavalo? – o título não é fundamental). Seus olhos atentos passeiam sobre a plateia enquanto comenta “que maravilha ser aplaudida de pé”. Com coragem e imponência ainda visíveis, ela se prepara para um cerimonial sobre a morte. Poderia ser perturbador dadas as circunstâncias, mas resulta na encenação insolente dos limites da existência.
Maria Alice, que se consagrou como atriz depois de deixar a carreira acadêmica na USP, está com Parkinson e sequelas de outros problemas de saúde. Precisará de cadeira de rodas ao longo da representação e que Luciano Chirolli conclua frases que esquece. Bom ator e companheiro que é, Chirolli usa esses lapsos de memória em variantes interpretativas do original de Fábio Furtado, enquanto ele mesmo, com um terno preto e empoeirado, sugere um dos mendigos solitários e perdidos de Esperando Godot, de Samuel Beckett. Faz sentido. Aos 80 anos, Maria Alice decidiu falar de seu velório. Com naturalidade, brinca com algo que desde sempre esteve cercado de espanto e indagações. Reafirma assim uma biografia de riscos e conquistas ao enfrentar o enigma: “como lidar com Ela, antes que Ela chegue?” Um dos caminhos é o improviso anárquico numa representação com rigor formal dentro do possível.
Maria Alice faz homenagem à poesia densa de Hilda Hilst e ao Teatro Pânico, segunda geração do Teatro do Absurdo, criada por aqueles que viveram a imigração, o exílio político, guerras civis, desenraizamento. Dois nomes estão em destaque, o chileno Alejandro Jodorowsky e o espanhol Fernando Arrabal. Sua afinidade maior é com o primeiro, também psicólogo com teorias e práticas pouco convencionais. No entanto, escapa do ângulo mais soturno desses escritores ao se aproximar da Hilda autora de Da Morte, Odes Mínimas (“Demora-te sobre a minha hora/Antes de me tomar, demora”). Um passo a mais e estaríamos com Noel Rosa que, já tuberculoso, compôs Fita Amarela (“Quando eu morrer, não quero choro nem vela/Quero uma fita amarela (…) Não quero flores nem coroa com espinho/Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho”). Aliás, Maria Alice curiosamente faz referência ao amarelo em determinado momento.
Não há espaço para réquiens quando ela, coberta com um véu, recebe um balde de flores despejado comicamente por Luciano Chirolli, que ainda “rouba” seu anel. Instante de distanciamento para a plateia não embarcar na emoção fácil. Tudo bem, tudo zen ou tudo Grande Sertão, Veredas: “Toda saudade é uma espécie de velhice”. Maria Alice continua aquela mulher que, divorciada e com as obrigações de mãe, deu as costas à rotina segura da academia para ser grande no teatro onde juntou Bertolt Brecht de A Ópera dos Três Vinténs à Mãe Coragem (perdeu o cargo na USP ao embarcar sem autorização formal para Lisboa com o Teatro Oficina. Não se arrependeu e nunca deixou de ser, à sua maneira, uma educadora).
O espetáculo é mesmo um parangolé afetivo de múltiplos desdobramentos por uma confraria de artistas (completam o elenco Alexandre Magno, Robson Catalunha, Carolina Splendore e Otávio Ortega). Vamos, pois, abrir mão de cânones estéticos para ver em Why the Horse? um rasgo de vitalidade embora trabalhe com o seu contrário. Nesta recusa do luto, nem tudo é muito nítido (lutas entre homens, a seminudez de uma jovem). O que prevalece é o clima que envolve a protagonista. No ambiente em que o real e o onírico são fluidos, o termo fé sai do contexto religioso para significar confiança no presente, estar livre na adversidade. Não há catarse porque o amanhã está em aberto e o hoje é a bravura dentro da arte. O futuro está suspenso porque Maria Alice Vergueiro sorri para o acaso e o ocaso neste encontro teatral jamais imaginado e estranhamente poético. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.