No último fim de semana, Marco Nanini fazia as apresentações finais da temporada de seu mais recente espetáculo no Galpão Gamboa, no Rio. “Me dei conta de que, por causa dos problemas da França, a peça tomou um tamanho que nem tinha”, disse, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo. Nanini se referia ao ataque à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, na semana passada. “A gente fala (na peça) ‘Paris é uma cidade doente’. Tivemos esse sabor de brincar com a cidade sem muita reverência.”

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O ar atual que a montagem ganhou satisfaz o ator, que tem uma preocupação especial com a contemporaneidade. Foi esse cuidado que prevaleceu em Beije Minha Lápide, espetáculo que estreou em agosto, no Rio, e chega a São Paulo nesta sexta-feira, 16, no palco do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

Inspirada na vida e em obras do escritor, poeta e dramaturgo Oscar Wilde (1854-1900), a montagem é o fim de um ciclo que permeia a relação de Nanini com os textos do irlandês. O primeiro contato do ator com a escrita de Wilde se deu no fim da década de 1960, quando estudava no Conservatório Nacional de Teatro (hoje Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Com um grupo de estudantes – que contava com Pedro Paulo Rangel -, resolveu montar uma peça cuja dramaturgia incluía, entre trabalhos de outros autores, o conto O Rouxinol e a Rosa. De lá para cá, leu e viu adaptações teatrais de outras obras de Wilde. “Gosto da qualidade do humor, da personalidade e da literatura: as palavras são postas no momento certo, a escrita é limpa, elegante e profunda.”

A vontade de levar Wilde ao palco, então, coincide, aproximadamente, com o tempo de vida do próprio autor: pouco mais de 40 anos. Uma das razões para justificar a demora é a tal preocupação de Nanini com o toque atual. “Nunca conseguia achar um jeito de fazer uma peça sobre ele”, diz. “Eu não queria interpretá-lo nem fazer uma peça de sua autoria porque surgiria a obrigação de me reportar à figura histórica. Queria uma repercussão mais contemporânea do que ele escreveu, que é tão atual.”

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Beije Minha Lápide surge de fatos como a onda de ataques homofóbicos – com destaque para as agressões com o uso de lâmpadas na Avenida Paulista, em 2010 -, que se relacionam diretamente com Wilde, preso por ter se relacionado com homens. Outra influência determinante é a construção de uma barreira de vidro em torno do túmulo do escritor no cemitério do Père-Lachaise em Paris: a ideia é evitar que os fãs do irlandês desgastassem a lápide com o ritual de beijá-la.

Preso em um cubo de vidro – como se vê na foto acima -, Nanini interpreta Bala, um fictício escritor e fã de Wilde que é detido por quebrar a tal proteção a fim de concretizar sua devoção com o tradicional beijo. Sempre separado pela cela, o protagonista tem contato com outros três personagens: sua filha Ingrid (Júlia Marini), a advogada Roberta (Carolina Pismel) e o carcereiro Tommy (Paulo Verlings). Irônico e, ao mesmo tempo, ranzinza e dócil, Bala tem quês de Oscar Wilde enquanto Nanini tem quês de Bala. “Eu não chegaria a quebrar um vidro, ou talvez chegaria, se estivesse em um estado de indignação”, brinca o ator. “Me identifico com o último monólogo, em que ele fala sobre relações humanas, o respeito que se deve ter pelo outro. É um texto que elimina o preconceito. O Bala tem isso e eu gostaria de ter isso cada vez mais.”

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Durante o espetáculo, o protagonista solta algumas frases que ajudam o público a entender sua complexa personalidade. Quando, em uma das muitas discussões com Roberta, vê alinhamento nas ideias de ambos, brada: “Não diga que concorda comigo!”, explicando que aquilo o faz sentir burro. Em outra ocasião, exibe seu hedonismo ao aconselhar: “No meu mundo, pecado é resistir às tentações. Faça isso e você adoecerá.”

Sagaz, o presidiário parece não ter pressa para se livrar de sua condição. Ao ter o primeiro contato com Roberta, troca farpas e a irrita com tiradas sarcásticas, até, depois de muito esforço, aceitar sua ajuda para sair do prisão. Tommy é outra companhia assídua, visto que Bala evita encontrar a filha Ingrid. Com o carcereiro, o protagonista desenvolve uma relação de cumplicidade e erotismo, em cenas quase sempre bem-humoradas.

Bala passa grande parte dos dias escrevendo uma correspondência. Trata-se de uma referência a De Profundis, carta de amor escrita por Wilde enquanto esteve na prisão.

Nanini não consegue eleger uma obra de seu ídolo como a favorita – pinça frases que o agradam, vindas de diversos textos. De Profundis, no entanto, está entre as que mais o agradam. “Fiquei comovido ao ler porque não era ficção, era realidade, com um senso crítico muito agudo”, aponta. “Gosto pelo documento que é, pelas condições em que foi escrita (sem que Wilde pudesse revisar), pelo cunho absolutamente pessoal.” Nanini também diz gostar de O Retrato de Dorian Gray e confessa não ter uma opinião sobre a poesia de Wilde. “Eu tenho problemas com poesia. Não sei ler. É uma falha, mas vou tentar.”

Mudanças. Inicialmente, o projeto tinha direção e dramaturgia de Felipe Hirsch, que teve de se afastar por problemas de agenda. Nanini convidou, então, Bel Garcia, com quem já tinha trabalhado na peça O Bem Amado (2007), para fazer a direção. A dramaturgia foi oficialmente assumida por Jô Bilac, que, até então, auxiliava Hirsch. Para escrever o texto, Bilac partiu do único elemento estético então proposto pela cenógrafa Daniela Thomas: a caixa de vidro. “É um símbolo muito forte, faz referência, ao mesmo tempo, ao túmulo e à prisão de Wilde”, diz o dramaturgo.

Bilac modificou a ideia inicial de fazer um monólogo, trazendo os jovens atores de sua Companhia de Teatro Independente. “Era a oportunidade de fazer um projeto que eu queria, com um autor que eu admiro e uma turma nova”, diz Nanini, novamente satisfeito pelo toque contemporâneo. O REPÓRTER VIAJOU A CONVITE DA PRODUÇÃO DO ESPETÁCULO. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.