Está “na alma, no coração, no sangue”. Os punhos fechados se cruzam sobre o peito enquanto Marcello Giordani, em seu camarim no Municipal de São Paulo, relembra a música de Giacomo Puccini. “Ele vai na essência do que é a vida. Seu heroísmo é apaixonado.” A relação visceral talvez explique o sucesso alcançado pelo tenor italiano como intérprete das principais criações do compositor.

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Entre elas, Manon Lescaut, que ganha uma nova produção a partir do sábado, 29, no teatro, com Giordani encabeçando um elenco formado ainda pela soprano Maria José Siri e o barítono Paulo Szot (em algumas récitas, o trio protagonista será formado pelo tenor Martin Muehle, a soprano Adriane Queiroz e o barítono Guilherme Rosa). A regência é de John Neschling e a direção cênica, do italiano Cesare Lievi.

A ópera foi o primeiro grande triunfo de Puccini e é baseada em personagens criados pelo Abade Prevost, que já haviam dado origem, anos antes, a uma adaptação operística pelas mãos do francês Jules Massenet. Narra a história de Manon, moça do campo que hesita entre os luxos da vida na cidade e a paixão pelo jovem poeta Des Grieux – e que, presa, acaba condenada a partir para a América.

“Eu já cantei as duas versões, o que me faz perceber algumas diferenças”, diz Giordani. “O que me chama atenção é o modo como a paixão é retratada. Na versão de Massenet, há uma cena em que os dois estão sós, vivenciando este amor. Em Puccini, isso nunca acontece. Por outro lado, Puccini não encerra a sua história no porto, em Paris. Ele acompanha o casal até a Louisiana e mostra a realidade que lá eles precisam enfrentar. E esta é uma outra forma de mostrar o quão grande era a paixão de Des Grieux por Manon”, explica ele.

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Giordani tem trinta anos de carreira. Fez de Puccini uma de suas especialidades, mas também Verdi – e tem cantado em boa parte das produções atuais das óperas desses dois compositores em palcos como o Metropolitan Opera House, de Nova York. Algumas amostras estão disponíveis em DVD: entre elas, Madama Butterfly, em montagem dirigida pelo cineasta Anthony Minghella, a própria Manon Lescaut, em versão dirigida por Gina Lapinski, e Simon Boccanegra, com direção de Giancarlo del Monaco. Seu começo, no entanto, se deu com papéis mais leves, de autores como Donizetti e Bellini.

“Eu tive muita sorte, minha voz era elástica, versátil e eu pude começar com um repertório específico e depois ir trocando, sem perder algumas características importantes, como os agudos, as notas mais altas. E, talvez estranhamento, apesar da vocalidade italiana, sempre me senti confortável no repertório francês, o que me possibilitou cantar papéis como o Des Grieux ou o Werther de Massenet”, ele explica.

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Perguntado sobre os planos futuros dessa evolução, ele ri quando lhe é sugerido o papel do Otello de Verdi. “É o sonho de qualquer tenor, é o próximo passo que todos gostaríamos de dar. Mas, não se trata só da exigência vocal, Verdi precisa de um estado psicológico, mental, que eu ainda não tenho”. E o repertório alemão? “Era um tabu, e talvez ainda seja, ter cantores italianos cantando ópera alemãs. Mas essa mentalidade está mudando e eu me vejo, quem sabe, cantando Lohengrin, de Wagner.”

Giordani criou uma fundação dedicada a apoiar jovens cantores. Em São Paulo, um encontro com os alunos do Opera Studio transformou-se em duas semanas de aulas, encerradas no domingo de manhã, com um pequeno recital na Sala do Conservatório.

“Para mim foi uma surpresa feliz”, ele explica. “Graças a Deus, encontrei grandes talentos e posso dizer que a ópera não está morta pois há uma nova geração talentosa em todo o mundo. Mas artistas como eu precisam ter paciência, tolerância, para ouvi-los, suas preocupações. Nós também fomos jovens, já estivemos na mesma situação difícil. Eu nasci em uma pequena cidade da Sicília, em uma família simples, não tinha dinheiro, possibilidade de viajar, de pagar por professores. Dei sorte, encontrei pessoas certas na hora certa, elas me ajudaram, me abraçaram, tomaram conta de mim. É por isso que peço aos meus colegas: não levem sua experiência para o túmulo. Se realmente gostamos de ópera, precisamos investir na nova geração. E sem cobrar caro pelas aulas!”

E o que ele acredita ser possível passar a um jovem cantor durante uma aula. “Em primeiro lugar, tento dar confiança e esperança. E compartilho minha experiência. Tenho trinta anos de carreira. Não digo que conheço alguma verdade absoluta. Mas eu ofereço a eles o que sinto, canto com eles. E tento mostrar que, se você sabe respirar e colocar a voz no lugar certo, cantar ópera é a coisa mais fácil do mundo.” Ele faz uma pausa, abre um sorriso. “Tudo bem, talvez não a mais fácil do mundo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.