Antes de ser batizado pelos críticos de autoficção, esse já era um gênero praticado pela escritora feminista Simone de Beauvoir (1908-1986), que, entre 1966 e 1967, após uma temporada na capital da ex-União Soviética, escreveu “Mal-entendido em Moscou”, livro inédito no Brasil e apenas publicado após a morte da autora. Beauvoir planejava lançar a novela no livro “A Mulher Desiludida” (1967/68), mas acabou desistindo. Não é difícil entender sua dúvida sobre a pertinência de publicar ou não o livro. O motivo está longe de ser falta de qualidade literária e próximo de um dilema particular: os personagens são por demais parecidos com Sartre e Simone de Beauvoir que, a exemplo do casal de professores sexagenários e aposentados do livro, André e Nicole, fizeram algumas viagens a Moscou – e, provavelmente, enfrentaram crise semelhante.

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Sartre teve um caso amoroso com a intérprete russa Lena Zonina e, insinuam biógrafos, amargou uma paixão incestuosa pela filha Arlette, que adotou legalmente em 1964, quando a tradutora completou 28 anos. Pois a grande rival da professora francesa de “Mal-entendido em Moscou” é justamente a filha do primeiro casamento de André, Macha, guia e intérprete, a quem ele dedica mais atenção do que suporta o ciúme de Nicole. Em tempo: Lena, a intérprete russa de Sartre, teve também uma filha chamada Macha e, descobriu-se, não falava só bem francês: era agente da KGB, o serviço secreto russo.

Logo se vê que a temporada moscovita de 1966 foi para Simone de Beauvoir um desapontamento, quando não um pesadelo. Suas convicções políticas foram fortemente abaladas com a extrema burocracia do regime soviético e a falta de liberdade na extinta URSS (não que a situação tenha melhorado na Rússia, desde então). Apesar de seus esforços para fazer de Mal-entendido em Moscou uma novela polifônica, em que o ponto de vista do homem tenha o mesmo peso na relação – simétrica, para fazer sentido -, a voz mais ouvida no livro é a da própria narradora que, desapontada com a falência do socialismo soviético, não vê a hora de voltar a Paris e livrar-se do tédio que lhe provocam as discussões políticas entre Macha e André. A dor pessoal é também a expressão de uma crise coletiva advinda da descrença.

Nessa relação especular com Nicole, Simone cuida, porém, para que esse não seja um romance totalmente autobiográfico como seus livros anteriores, especialmente “Os Mandarins”, que lhe deu o Goncourt em 1954 – roman-à-clef em que o papel do intelectual na sociedade é igualmente posto à prova, com Simone escancarando seu caso extraconjugal com o romancista americano Nelson Algren. Em “Mal-entendido em Moscou”, no outono de sua existência, Simone não se permite mais colocar como antagonistas velhos amigos da revolução (como Sartre e Camus em “Os Mandarins”, retratados como Robert e Henri, respectivamente). Na novela póstuma, publicada em 1992, o antagonista é a velhice, que faz o animal sucumbir à gravidade, sentir inveja dos jovens e resmungar da rigidez que torna seu corpo avesso à revolução.

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Sartre e Simone de Beauvoir mantinham uma relação aberta, em que o companheiro até transferia para seus braços suas ex-amantes (ela era bissexual). Quando chegou a idade de se tornar invisível aos olhos alheios, a crise existencial foi inevitável. A novela é fruto dela. Embora a justaposição de pontos de vista seja fruto da alternância narrativa, de uma relação em que o diálogo se dá por meio da estrutura do texto, ela ainda segue, em “Mal-entendido em Moscou”, o modelo narrativo gidiano que a guiou na juventude. Curiosamente, também Gide se desencantou com a União Soviética. Espíritos libertários não suportam burocratas vigilantes dos bons costumes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.