Foram – ainda estão sendo – 1,8 milhão de ingressos vendidos, e A Odisseia dos Tontos, que estreia nesta quinta, 31, poderia já ter feito 2 milhões, se não fosse um incidente de percurso. O filme estreou em agosto na Argentina, e o agravamento da situação política e econômica – que acabou com a vitória da oposição na eleição de domingo -, levou ao temor de que Maurício Macri impusesse um novo curralito. “As pessoas passaram a contar cada peso para sobreviver e, nesse quadro, ir ao cinema tornou-se supérfluo”, avalia o diretor Sebastián Borensztein, em entrevista ao Estado, na tarde de terça-feira, na Mostra.

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Pela manhã, o repórter falara por telefone com Ricardo Darín, e a avaliação foi parecida. “Não creio que o filme, apesar do sucesso, tenha influenciado na eleição. Começamos a trabalhar nesse projeto há três anos. Somente de roteiro, foram dois anos de muito trabalho. Há três anos a situação era outra – na Argentina, no Brasil, no mundo. Estamos assistindo ao agravamento de uma crise planetária. Gente procurando comida no lixo na Argentina, protestando no Chile, na Europa. Torço por (Alberto) Fernández, o presidente eleito, como torci por Macri, independente de filiação partidária. Torço pela Argentina, pelo povo, mas o problema é o sistema, que se baseia na concentração de riqueza e na desigualdade social.”

Para o espectador que vai assistir A Odisseia dos Tontos, o filme talvez bata na tela como um prosseguimento de Relatos Selvagens, de Damián Szifrón, outro megassucesso, maior ainda, argentino. Lá, Darín fazia o engenheiro que explodia, literalmente, o mundo, em protesto contra a burocracia. A Odisseia começa pelo fim, também com uma explosão, e só depois vai se desdobrando o relato. “A ideia da explosão é fundamental, mas creio que há uma diferença muito grande. O engenheiro, especialista em explosivos, age sozinho. A ação na Odisseia é coletiva, o grupo unido, a formação da cooperativa. É a luta dos giles (tontos) contra os hijos de p… (fdp) que nos exploram e enganam.” Como diz a frase no cartaz, após o título – “Mexeram com os perdedores errados.”

Darín conta que o projeto foi concebido na sua produtora e já nasceu coletivo. “Lemos o livro todos ao mesmo tempo. Sebastián, Federico Porternak (o produtor), meu filho, Chino (Darín) e eu. Estamos sempre buscando projetos, discutindo possibilidades. O livro nos deu o que pensar, acendeu uma luz vermelha. O corralito (o congelamento das contas bancárias) em 2001 bateu fundo na consciência do país. A história mostra como a corrupção funciona.” O gerente do banco, mancomunado com o poderoso local, confisca as economias dos integrantes da cooperativa. Como grupo, os perdedores vão se organizar para recuperar seu dinheiro. Mas eles não são especialistas em crimes. Não querem roubar uma fortuna, querem só seu dinheiro de volta. Uma situação que envolve a luta por direitos e decisões éticas. Em inglês, o filme chama-se The Heroic Losers (Os Perdedores Heróicos).

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“Temos, entre os personagens, uma representação da sociedade argentina – o peronista, o anarquista, a empresária cujo negócio vai bem, o mais marca-diabo de todos, que habita nos alagados. E a história também tem esses personagens de pai e filho, que me permitiram contracenar com Chino.” E…? “Mais do que como pai, contracenar com meu filho me deu um prazer enorme, porque eu estava acostumado a ver o resultado dos trabalhos finais dele. Dessa vez, compartilhando o set, pude ver como ele é. Focado, dedicado, solidário. Como a produção era nossa, todos demos o melhor, tentando ajudar-nos a resolver os problemas e interpretando personagens que, no fundo, remetem a uma grande tradição de comédia italiana. Foi um set muito feliz, até por contar uma história de gente que não se abate, que reage. Os problemas voltaram no lançamento, quando fomos atropelados pela realidade, e mesmo assim A Odisseia funcionou, e muito. Ou seja, mesmo sem influenciar na eleição, o filme teve ressonância artística e social.”

Há pelo menos 20 anos os críticos dizem que Darín dá uma cara ao homem e ao cinema argentinos. O que ele pensa disso? “É uma honra, uma inspiração, mas também um desafio. Não escolho personagens como símbolos, nem para forçar uma imagem, mas porque são verdadeiros. Esse homem perdeu tudo – mulher, dinheiro. A vida perdeu sentido para ele, e é o filho que o empurra à ação. É uma situação humana, que posso entender e expressar na tela. O público percebe.” O cinema não é só um trabalho. “Gosto do que faço. Sou amigo de Sebastián (Borensztein), Fizemos Conto Chinês, Kóblic, frequentamos um a casa do outro. Tem uma coisa muito forte aí. Uma coisa de família, uma família de cinema.” Embora internacionalmente conhecido, e um grande nome do cinema de língua espanhola, Darín se recusa a representar em inglês. Por que? “Não é minha língua. Não consigo raciocinar em inglês. E se começo a traduzir mentalmente o que digo a interpretação é afetada. Não sou mais eu. É melhor assim. Já tenho bastante trabalho para tentar abrir mais uma frente em que não me sinta confortável.”

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Uma última questão, o Papa Francisco, personagem do grande filme de Fernando Meirelles que encerrou a Mostra: “Não sou religioso e também não vi Dois Papas, mas admiro Fernando (Meirelles). Tínhamos um projeto que não se realizou. Encontrei-o num festival e renovamos o desejo de trabalhar juntos. Quanto a Francisco… Sua autoridade moral transformou-o na grande voz em defesa dos excluídos. Merece todo o meu respeito e admiração.”F
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.