A Rede Globo está apresentando, com a competência técnica de sempre, a série brasileira Mad Maria. Os tentáculos da ferrovia da morte, a Maria Louca, também alcançaram o Planto de Santa Catarina, onde cada dormente enterrado sob os trilhos representou o cadáver de um caboclo dos nossos sertões.
A Ferrovia do Contestado foi construída pela Brasil Railway Company, fundada em 9 de novembro de 1906, em Portland, Oregon, USA. Era propriedade do chamado Grand Trust Farquhar ou simplesmente Sindicato Farquhar, cujos tentáculos se estendiam por vários países do mundo.
O gigantesco truste multinacional englobava diversas empresas americanas e canadenses. Havia construído a Canadian Pacific Railway e no Brasil já nasceu ligado à Cia. Light and Power, cuja história registra jogadas obscuras na área das concessões. Em 1905, Percival Farquhar veio ao Brasil a convite do então ministro de Obras, o catarinense Lauro Muller.
O truste Farquhar logo absorveu a Estrada de Ferro Mogiana, a Paulista, a Sorocabana, a Madeira-Mamoré e muitas outras. Quase açambarcou a Doca de Santos, não fosse a campanha de jornalistas patriotas como Julio Mesquita, Maurício Lacerda, Pandiá Calógeras e Serzedelo Correa. Atirou-se sobre a Amazônia, onde abriu a Port of Pará. Fundou a Brazil Land Cattle, que chegou a ter 150 mil cabeças de gado.
No Sul do Brasil ganhou 34.800 quilômetros quadrados de terras ao longo dos trechos ferroviários Itararé-Rio Uruguai e São Francisco-Rio Paraná. Foi nessa área, já conflagrada pela questão de limites entre Santa Catarina e Paraná pelo surto messiânico de São João Maria e pela disputa das plantações de erva-mate, que Farquhar estabeleceu a Southern Brazil Lumber and Colonization Company.
Implantou na região diversas serrarias, sendo que uma delas, a de Três Barras, derrubava cerca de cinco milhões de pés de pinheiros araucárias por mês, de longe a maior devastação já realizada no mundo, comparável às queimadas da Amazônia, hoje.
A construção da estrada, tanto no trecho entre o Iguaçu e o Uruguai como no traçado entre Porto União e a cidade de São Francisco, exigiu a contratação de milhares de operários, muitos dos quais provenientes do Norte do Brasil. Ao serem lançados no desemprego, eles eram expulsos das terras concedidas à Lumber nas margens dos trilhos (15 quilômetros para cada lado da estrada) e obrigados a se internar nos sertões para sobreviver, gerando uma enorme massa de descontentes e revoltosos.
Por sua vez, a Lumber and Colonization, além de expropriar os donos de pinheirais na faixa de terra que lhe fora presenteada, cedeu muitos lotes a ?coronéis? do sertão para que estes os revendessem aos matutos. E quando as últimas prestações eram quitadas, os capangas expulsavam os pobres diabos das terras que haviam adquirido.
Ora, a história ensina que não se brinca com o campo. Revoluções violentas na humanidade tiveram origem no campo. Ao contrário do que diz a lenda, o camponês é um homem violento. Envolvido pelo memetismo que a natureza e os animais lhe transmitem, tem reações imprevisíveis se molestado. Pois foi nesse tremedal de sociopatologia provocado pela ação do truste que a Guerra do Contestado encontrou seu combustível. No começo era uma fagulha que chispou dos trilhos da Ferrovia da Morte. Logo se transformou num incêndio de enormes proporções.
À medida que iam terminando as obras da estrada de ferro da Brasil Railway aumentava a massa de desempregados pelos vales verdejantes do Rio do Peixe e seus afluentes, espalhando-se como espuma pelas estradas, bolichos e povoados dos carrascais. Mas as serras-fitas da Lumber Co. aumentavam sua produção, chegando a 330 metros cúbicos de madeira de araucárias, canelas, imbúias e cedros por dia.
Em meados de 1912, José Maria havia sido tocado de um lugarejo chamado Taquarussú de Baixo, pressionado pelo coronel Albuquerque, o mais importante mandachuva de Curitibanos, aliado da poderosa família Ramos, que, então, governava Santa Catarina. Acusavam-no de monarquista e irridente. Com ele levantou acampamento uma turba de crentes, supersticiosos e desempregados, entoando ladainhas pelas veredas do sertão e acusando a República de ser invenção do diabo.
Dirigiram-se para bem longe, para os campos de Iraní, área reivindicada pelo Estado do Paraná, numa procissão patética onde os cantos desafinados se misturavam ao rufar dos tambores ?bumbos legueiros?, tilintar das esporas, relincho de cavalhada e berros contra a República e cartórios.
As serras azuladas do Iraní: terrenos acidentados, ásperos, dobrados e redobrados, cobertos de pinheirais, faxinais, caragoatazais, entremeados de campestres, sangas, banhadões, peraus, itaimbés, grotas, precipícios e cavernas.
Desde os finais do século XIX ali viviam imigrantes gaúchos refugiados das revoluções sulistas, homiziados, criminais, gente sem eira nem beira, sem lenço nem documento, rolando na miséria, apertados.
Em meados de 1912, José Maria lá estava bem arranchado, perambulando, festando, ministrando beberragens de ervas, sonhando, lendo trechos do livro Carlos Magno e os doze pares de França para os cablocos embevecidos. Mas as autoridades de Curitiba consideraram aquela marcha de brancaleones desafortunados uma invasão de território e na cidade corria o boato que os jagunços haviam proclamado a monarquia nos campos do Iraní. O comandante do Regimento de Segurança do Paraná, coronel João Gualberto (que era pernambucano e tinha ambições políticas), recebeu ordens de marchar contra os fanáticos. E trazê-los manoteados para as barras dos tribunais…
No dia 20 de outubro, João Gualberto manda um bilhete a José Maria, intimando-o a depor armas ?sob pena de desencadear contra ele uma guerra de extermínio, a fim de fazer voltar a ordem e a lei àqueles sertões?.
Um chefe político da região, coronel Domingos Soares – espécie de pai dos pobres, com vastas amizades, compadrios e parentelas – é encarregado de entregar a mensagem. Nesta missão (talvez conciliatória) ele chega pessoalmente a José Maria, que lhe diz, na cara, ?não reconhecer valor em bilhete escrito a lápis?!
Sempre tentando contemporizar, Domingos Soares volta a João Gualberto e aconselha a não atacar o acampamento do profeta sertanejo, mesmo porque ?ali estava muita gente bem armada?. Ainda assim o militar resolve avançar e, às três da madrugada nevoenta de 22 de outubro de 1912, levanta a tropa. Dentro dos padrões da guerra clássica, sua infantaria (cerca de sessenta homens do Regimento de Segurança do Paraná, vai na frente. O comboio de munições com uma metralhadora marcha no meio. Na retaguarda segue um pelotão de onze cavalarianos bem montados, com lanças. Mas o que ele não sabia – ou fingia ignorar – é que esse pequeno troço iria mergulhar num rio caudeloso de 200 sertanejos em armas. E mais: a metralhadora e parte das munições logo seriam inutilizadas pelas águas, no vau de um arroio.
O acampamento rebelde rezava – e sonhava – quando foi atacado. José Maria imediamente destacou diversos grupos de sertanejos para os capões de mato que cercavam o local. No Quadro-santo (o centro do reduto, o coração da cidadela), deixou o grosso da tropa preparado para qualquer eventualidade. João Gualberto, ao perceber que os matos ao redor estavam cheios de caboclos, começou a gritar para ?estender linha? e ?assentar ferros?. Mas a metralhadora engasgava e não cuspia fogo.
A cena toda deve ter durado alguns minutos, porque logo os piquetes da cavalaria rebelde entrariam em ação. À frente deles vinha – como um possesso – o próprio José Maria, dando gritos medonhos de Viva a liberdade!, Viva a coroa do céu!, Viva a coroa do Império!.
O coronel João Gualberto ficou encurralado entre o matagal da esquerda, o itaimbé da direita e o banhado de trás. Endemoniados, os jagunços combatem de arma nobre (arma branca) – facões de aço e porretes de três quinas – e assumem a ofensiva. No corpo-a-corpo os fuzis levam desvantagem para os pontaços e a soldadesca começa a debandar, entre gritos apavorantes. João Gualberto cai do cavalo – que alguém lhe rouba para fugir – e é retalhado no aço da caboclada. Mas também José Maria, reconhecido pelo seu gorro de pele de onça, arroja a fronte ao pó, chumbado.
Terminada a refrega, treze soldados e um alferes estavam mortos no tremedal. A metralhadora, quarenta fuzis e mais de três mil balas caem nas mãos dos rebeldes. Depois da vitória, a caboclada se dispersou dissimuladamente. Novas forças, vindas do Paraná, deram uma varejada no terreno, mas, inexperientes, nada encontraram e deram o episódio por encerrado. Embora – na verdade – tudo estivesse apenas começando.
Os funerais do coronel João Gualberto, em Curitiba, foram suntuosos. Pareciam até uma triste música de fundo, para acompanhar o barulho surdo do incêndio que começava a crepitar – a estalar – nos sertões do planalto em chamas…