Machado de Assis visto por Ruy Barbosa

Num congresso de literatura, ocorrido há poucos meses, aconteceu o inesperado ? e inimaginável: o imenso Machado de Assis viu-se de repente transformado numa espécie de Bei de Túnis eciano, vítima de uma série de críticas contundentes por parte de um contista de terceira categoria, cujo nome omito por considerá-lo indigno de citação numa frase em que consta o nome emblemático do Bruxo de Cosme Velho.

Era, faço questão de repetir, um contista de terceiro time ? ou quarto. Os de primeiro time são, para citar o ?onze? da minha preferência, o próprio Machado (ainda o ?primus inter pares?, não apenas do Brasil mas da Língua Portuguesa), Artur de Azevedo, Alcântara Machado, Guimarães Rosa, Oto Lara Resende e Clarice Lispector, entre os mortos, e Dalton Trevisan, Lígia Fagundes Teles, J. J. Veiga, Rubem Fonseca e Luís Vilela, entre os vivos.

Objetivando, de certo modo, neutralizar os efeitos venenosos e deletérios da diatribe anti-machadiana no meu espírito, busquei uma espécie de refrigério ou antídoto na releitura do admirável discurso pronunciado no dia 30 de setembro de 1908, na Academia Brasileira de Letras, em homenagem a Machado, cujo corpo, em câmara ardente, dormindo no seu esquife, logo seria conduzido à morada derradeira.

Quem pronunciou a extraordinária peça oratória a que me refiro? O excelso Ruy Barbosa, a mais poderosa máquina cerebral do nosso país, como o definiu, com extrema propriedade, o seu contemporâneo e grande amigo Joaquim Nabuco.

É dessa obra-prima do rival leigo do Padre Antônio Vieira que eu irei extrair, como quem extrai pepitas de ouro de um garimpo inesgotável, alguns breves fragmentos.

Vamos ao primeiro deles: ?Machado de Assis não é apenas o clássico da Língua Portuguesa; não é o árbitro das Letras; não é o joalheiro do Verso, o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer. É o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom?.

Mais um excerto da oração da Águia de Haia, erguendo o seu vôo verbal alcandorado sobre o demiurgo criador dessas culminâncias que são Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas: ?Nascido com uma dessas predestinações sem remédio ao sofrimento, a amargura do seu quinhão nas expiações da nossa herança não o mergulhou no pessimismo dos sombrios, dos mordazes, dos invejosos, dos revoltados. A dor lhe aflorava ligeiramente aos lábios, lhe roçava ao de leve a pena, lhe ressumava sem azedume das obras, num ceticismo entremeado de timidez e desconfiança, de indulgência e receio, com os seus toques de malícia a sorrirem, de quando em quando, sem maldade, por entre as dúvidas e as tristezas do artista?.

Em outro passo do seu panegírico luminoso e iluminante, Ruy dizia, ou melhor, cantava: ?Das riquezas da sua inspiração lírica, da sua maestria no estilo, da sua sagacidade na psicologia, do seu mimo na invenção, da sua bonomia no humorismo, do seu nacionalismo na originalidade, da sua lhaneza, trato e gosto literário, darão testemunho perpetuamente os seus escritos, galeria de obras-primas, que não atesta menos da nossa cultura, da independência, da vitalidade e das energias civilizadoras da nossa gente do que uma exposição inteira de tesouros do solo e produtos mecânicos do trabalho?.

Dizia ainda o augusto Doutor da Liberdade, na sua formosa peroração: ?Mestre e companheiro, disse eu que nos íamos despedir. Mas disse mal. A morte não extingue; transforma. Não aniquila; renova. Não divorcia; aproxima?. E concluindo com chave de ouro, Ruy formulava uma síntese verdadeiramente emblemática: ?Modelo foi de pureza e correção, temperança e doçura; na família, que a unidade e devoção do seu amor transformou em santuário; na carreira pública, onde se extremou pela fidelidade e pela honra; no sentimento da Língua Pátria, em que prosava como Frei Luis de Sousa e cantava como Camões?.

Poderia dizer mais o grande Ruy sobre o imenso Machado? Ele disse tudo.

João Manuel Simões é escritor. 

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