É tudo escuro e vazio. Um tempo em que não há indignação nem revolta, tensão ou loucura. O nada, quem imaginaria, é o estágio adiante, a era em que estamos todos embriagados pela perversidade e condenados pelas paixões. É a agonia de se chegar ao limite da água mais funda, à beira do poço sem fundo, da despedida, do infinito, do suicídio. Não parece haver esperança que dê conta a não ser pelo fato que quase passa despercebido e trai o niilismo do próprio profeta: antes do fim, a beira ainda é a beira e foi sentado nela que Jards Macalé fez um disco brilhante.
E a beira de Macalé é poderosa. Ela termina com 20 anos sem um álbum com músicas inéditas do início ao fim, o leva para os braços de um grupo de músicos uma geração mais jovem e bons em ver flores no deserto, ou talvez o contrário, e amarra canções cheias de uma beleza distópica já chamada por algum tempo de anti-canção ou estética da desconstrução. Com 75 anos até o próximo dia 3 de março, transformado por dez dias inconsciente em uma cama de hospital em 2018, quando foi derrubado por uma broncopneumonia “barra pesada”, Macalé volta ao front: “Eu diria que é um disco de 2019. Um disco datado, com angústias e dúvidas deste tempo. Qual perspectiva podemos ter de futuro? E agora? Para onde vamos?”
Besta Fera é o nome do álbum e da música para a letra adaptada por ele para o poema Aos Vícios, de Gregório de Mattos. “A ignorância dos homens destas eras / Sisudos faz ser uns, outros prudentes / Que a mudez canoniza bestas feras.” É a beleza do precipício, a lucidez que se tem quem olha para baixo e compõe versos assim: “Nem quero que saibam / O valor de minhas canções / Se boas ou más, pouco me importam / Elaborei com meu calor / E nesse trabalho eu levo a flor / Ninguém me bate / E posso prová-lo assim que for / Dado o remate…”, de Valor.
Macalé é agora “o homem do fim do mundo” que reaparece pelas mãos de alguns dos músicos e compositores que também estão ao lado de Elza Soares em dois discos: A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus é Mulher (2018). A produção musical é de Kiko Dinucci e Thomas Harres, a direção artística de Rômulo Fróes e a geral de Rejane Zilles, mulher de Jards. As músicas têm arranjos do próprio artista e de Guilherme Held, Kiko Dinucci, Pedro Dantas, Romulo Fróes e Thomas Harres, além do saxofonista Thiago França (Buraco da Consolação) e do cavaquinhista Rodrigo Campos (Besta Fera).
“Eu quis fazer um disco paulioca, mas mais paulista do que carioca”, diz ele.
E mais cinza do que azul, ele concorda. Vampiro de Copacabana, de Macalé e Dinucci, começa com uma trilha de não se ouvir no escuro. Um baixo pedal cria tensão, há ruídos ao fundo e uma letra agonizante. “Quis assim, um disco para se ouvir inteiro, música após música.” Então, a próxima é Besta Fera, um samba que Macalé criou sobre letra do poeta do Brasil colonial do século 17, o Boca do Inferno Gregório de Matos.
O clima pesa de novo com Trevas, uma adaptação para Canto I, de Ezra Pound, a partir de uma tradução feita por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos.
Artilharia pesada que resulta em versos que não deixam dúvida de que algo não vai bem. A instrumentação é espantosa: “Trevas, trevas / Treva a mais negra sobre homens tristes / Trevas, trevas / Treva a mais negra sobre homens tristes.”
O respiro talvez seja a bailável Buraco da Consolação (parceria com Tim Bernardes), um samba de gafieira com belo arranjo de metais pensado por Thiago França. “Seu coração já é dela, melhor nem lutar, não tem mais salvação / Sei que daqui por diante, mais nada de bom pode acontecer / A coisa já ficou feia e é tudo que eu não desejei pra você.” Sim, o amor dos novos tempos também parece sem salvação.
Há dois outros momentos épicos em Besta Fera, projeto patrocinado pela Natura Musical. O realismo fantástico de Peixe é alucinante e arrebatador. Macalé e Dinucci dividem a música e Rodrigo Campos faz a letra. A voz é de Juçara Marçal. Se disserem que que é um afro-samba de Gabriel García Márquez, também vale. “Peixe subiu / Das entranhas verdes do mar / Viu o que viu / Inventou as patas, sumiu / Dia seguiu / Conquistou as matas de rio / Quis descansar / Aprendeu andar.”
Há momentos em que Macalé parece diluído pelo coletivo e pela força criativa de quem está a seu lado. “Eu digo que é um disco de todos, não tive nenhum problema com isso.” Mas aí vem a tal Valor, a última, e quem ressurge é o velho Jards Macalé como se estivesse recuperando uma gravação perdida dos anos 1970. Ele e seu violão genuinamente mau tocado rasgando a verdade sobre si mesmo. Embora tudo pareça trevas, não acredite. Macalé as usa só para mostrar como vale a pena estar vivo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.