Os armários de Jards Macalé foram saqueados. Marcelo Fróes, produtor e dono do selo Discobertas, foi visto entrando em sua casa e revirando tudo, fitas e mais fitas cassete das quais Jards nem queria muito saber. Ali havia uma relíquia sem valor mensurável.

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Músicas desfalecidas, que tiveram suas vidas ceifadas logo depois do nascimento pelo próprio progenitor. Jards, lá pelo começo dos anos 1970, gravou quase tudo o que fez, mas muitas vezes não se contentou. Só levava à luz canções que sentia devidamente bem-acabadas, de violão limpo e ideia estruturada. Seu rigor o ergueu, mas também foi cruel com uma produção à altura de todo o melhor material que lançaria a partir dali.

O box Anos 70 reúne os dois primeiros álbuns de Jards, títulos raros lançados em LP pela gravadora Philips. Agora, Jards Macalé (1972) e Aprender a Nadar (1974) trazem, além das faixas originais, bônus com as gravações de fitas demo da época de canções como Movimento dos Barcos, Boneca Semiótica e Rua Real Grandeza. A segunda parte da caixa é a mais reveladora. Dois discos de músicas inéditas feitas em registros absolutamente caseiros, com direito a criança chorando ao fundo e barulho do botão ‘stop’ do gravador. Uma sujeira que não tira o brilho de uma produção obscura, mas igualmente genial.

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Jards foi implacável consigo mesmo. Música que não ficasse boa, que não respeitasse seu padrão de qualidade ao violão e na voz, dormiria por anos até que um príncipe a despertasse. Ou não. Se o produtor Marcelo Fróes não insistisse muito, certamente essas canções que surgem apenas agora jamais veriam o brilho do dia.

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O material mais precioso traz um violão ainda sem depuração (que jamais chegaria a ser absoluta), uma voz inconstante (ora mais empostada no grave, ora mais solta nos médios) e parcerias que nunca deveriam adormecer. A primeira inédita do volume 1 é em espanhol, Pasar La Vida, com a voz e o violão nervosos e o som do gravador manual desligando e ligando novamente para continuar o registro. “Eu estava sempre gravando para testar coisas, ideias, melodias, frases… Muitas ficaram pelo meio do caminho, mas ouvindo agora me interessei bastante por aquele violão que eu fazia”, diz Jards. Ele conta que relutou em aceitar a proposta do lançamento feita por Fróes. “Eu pensava: se elas estão ali paradas, é porque não estão prontas. Mas depois ouvi melhor e acabei gostando.”

Uma parceria com Capinam tem o nome de Noites Alegres, Sem Assunto. Outra com Jorge Mautner, Planeta dos Macacos, só havia sido lançada pelo parceiro em 1973. A marchinha é cantada por Mautner com a letra que aparece no encarte de Jards: “Vem comer essa banana / que é uma refeição de fato, meu bem / Que eu te dou o melhor naco…”. Na voz de Jards, no entanto, ela não condiz com o próprio encarte talvez por um arrependimento no verso que, se virar metáfora, pode soar grosseiro. “Vem comer essa banana / que eu carrego no saco, meu bem …” Jards segue cantando em suas gravações caseiras Saia do Caminho (de Custódio Mesquita e Edwaldo Ruy), Cuidado com a Outra (Nelson Cavaquinho e Augusto Thomaz Jr) e Um Favor (de Lupicínio Rodrigues). Fica exposta sua escola, revelada a força da influência quando ele atingisse seu formato definitivo. “Eu fiquei surpreso com muitas coisas que ouvi nesse material. Eu tinha uma batida de violão, uma concepção diferente, um outro tipo de harmonia.”

Fica claro na música Terceira Vez, do volume 2, que Jards gravou tudo aquilo sem noção do que viria ser. Ele brinca com o violão, exagera nos graves, erra a letra. Mas é linda a canção que ele só gravaria no disco O Q Faço é Música, de 1998. A seguir, uma parceria com Vinicius de Moraes, que ele gravaria no mesmo disco e que teria interpretações de Maria Bethânia (no disco Que Falta Você me Faz, de 2005) e Clara Nunes (em Clara Nunes, de 1973), é O Mais que Perfeito.

História boa é a de Crolatus Terrificus. Jards leu esse poema de Paulinho da Viola em 1978, quando folheava a Revista Anima. Achou tão sensacional que resolveu musicá-lo, à revelia do próprio criador. Anos depois, ao encontrar Paulinho, foi mostrar o resultado e soube à queima-roupa: Arrigo Barnabé já havia feita música para aquilo. A música, lançada por Arrigo em Tubarões Voadores, de 1984, ficou guardada até hoje, quando Jards revela sua versão.

As inéditas do segundo disco começam com Agora. Um bebê chora ao fundo enquanto seu violão parte para uma harmonia de vai e vem, cromática, de meio em meio tom. Já é outro Jards. Kohoutec, também nos cromatismos, filosofa sobre o cometa com esse nome que passou próximo à Terra naquele ano de 1973. “Que vem do não vem, de que vai do não vai…”. O violão se liberta do samba e cria climas. “E eu, em cima do planeta Dum Dum, indo de nenhum lugar, vindo de lugar nenhum.” Há ainda Fogo na Palha, Simplesmente, Transformar o Mundo (texto de Bertold Brecht) e Quero Viver Sem Grilo. Canções de almas resgatadas do limbo das fitas cassete.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.