Ao ser encontrado morto, aos 56 anos, em agosto do ano passado, em seu pequeno apartamento no bairro do Paraíso, em São Paulo, o artista Hudinilson Júnior era uma irreconhecível sombra do Narciso que, no começo dos anos 1980, fotocopiava o corpo nu em máquinas xerox. Consumido pelo álcool, Hudinilson já não tinha motivos para apreciar esse mesmo corpo, maltratado pela dependência da bebida e tentativas de autodestruição. Justamente quando sua obra começava a ser valorizada no mercado doméstico e internacional, Hudinilson se foi. No dia 25, quando o Museu de Arte Contemporânea (MAC) inaugurar sua exposição com 31 trabalhos doados pela família do artista e mais 5 do acervo do museu, um novo capítulo se abre. Ela precede outra individual do artista, em março, na Galeria Jacqueline Martins, e outra em abril, no Festival de Glasgow, a mais completa mostra dele na Europa, onde instituições como o Reina Sofia e a Tate Modern já disputam parte de seu acervo.
A proposta de doação das 31 obras ao MAC – entre desenhos, xerox, colagens e objetos – não surgiu do nada, segundo o diretor do museu, Tadeu Chiarelli. Os pais do artista, Maria Aparecida e Hudinilson Urbano, procuraram o MAC por ter sido lá que Hudinilson Júnior fez 19 exposições, desde 1982. O interesse do museu por sua obra, lembra Chiarelli, pode ser medido pela presença de Hudinilson em duas das seis exposições gerais do acervo em exibição na nova sede do museu, agora totalmente ocupado com a montagem de sua individual no segundo andar.
O mote da exposição é Narciso, figura mitológica cara a Hudinilson e representada em vários dos trabalhos expostos a partir do próximo sábado. Ao contrário do herói grego da Beócia, cuja beleza incomparável o tornava semelhante a um deus, Hudinilson não era nada bonito, mas talvez por isso mesmo buscasse na beleza do outro um possível espelho. Certa vez, quando a arte postal estava ainda em processo embrionário, enviou 2 mil cartas em busca de um sósia ao redor do mundo. Não achou. Passou, então, a cultivar seu reflexo longe da lagoa de Eco, ao contrário de Narciso. Mais exatamente, nas revistas de nus masculinos.
Indiferente ao apelo das ninfas, como seu modelo, Hudinilson foi também buscar apoio teórico numa antiga obra de André Gide, Tratado de Narciso (Teoria do Símbolo), que virou seu livro de cabeceira. Gide defendia que Narciso buscava na lagoa não a própria imagem, mas uma forma ancestral que se perdera no paraíso edênico, onde cada coisa era exatamente aquilo que parecia. Incapaz de só contemplar, ele queria possuir a própria imagem, beijando-a na superfície do lago, mas percebeu que esse gesto a destrói. A verdade permanece atrás da forma. Solitário, pueril, Narciso, segundo Gide, é um Adão no paraíso, “que está sempre a se refazer”.
Hudinilson tentou sintetizar esse refazer eterno numa mala que traz sua imagem grafitada – pelo próprio artista, talvez sob orientação de Alex Vallauri, seu mestre na técnica. Nessa mala, recuperada pelo laboratório de restauro do MAC, estão os objetos que lhe eram mais caros (um espelho, um maço de cigarros Campeão e uma xerox de seu RG).
“A exposição flagra como o seu interesse pelo corpo humano se constitui, seja a partir dos autorretratos produzidos à mão livre, seja por meio da colagem, em que o uso de imagens de corpos outros sugere uma percepção do real como projeção do seu próprio corpo”, analisa Chiarelli.
Hudinilson Júnior chegou a aprofundar essa questão de Narciso como espectador forçado de um mesmo espetáculo, ao instalar num outdoor em frente à igreja da Consolação, em 1981, dois manequins laqueados de branco sobre um fundo vermelho, um olhando para a rua e outro de costas. A solidão do homem urbano (a mesma de Narciso), sua sexualidade e a distância forçada do outro são questões que se repetiriam em outros trabalhos desse artista à margem do mercado, performático e precursor em muitas áreas, inclusive na de intervenção urbana. Muito antes dos “rolezinhos”, lembra sua marchande Jacqueline Martins, ele já protestava contra a discriminação – no caso, a praticada por galerias de arte.
Muitas delas amanheceram lacradas no dia 6 de julho de 1979 com um adesivo que trazia as seguintes palavras: “O que está dentro fica, o que está fora se expande”. Era mais uma intervenção do grupo 3Nós3, formado em abril daquele ano por Hudinilson, Rafael Franca (1957- 1991) e Mário Ramiro. A primeira intervenção, Ensacamento, foi memorável: na madrugada do dia 29 de abril, as estátuas da cidade amanheceram cobertas por sacos de lixo, causando reações indignadas.
HUDINILSON JÚNIOR – MAC-USP. Av. Pedro Álvares Cabral, 1.301, tel. 3091-3039. 3ª, 10 h às 21 h; 4ª a dom., 10 h às 18 h. Grátis. Abertura sábado, dia 25.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.