O clima existente atualmente em torno da assistência à saúde, em nosso meio, compromete gravemente o relacionamento médico paciente.
Mal remunerado, o profissional médico vive inseguro e insatisfeito.
Os doentes, por sua vez, presumindo que poderão ser mal atendidos, dirigem-se à consulta com predisposição negativa, mal-humorados e até agressivos.
Infelizmente acontece, embora não seja a regra, mas exceção: médico e pacientes preconceituosos, com ânimos negativos, repelem-se mutuamente, estabelecendo-se o conflito.
Dois fatores contribuem especialmente para tais animosidades:
1 – Pletora nos serviços assistenciais; exagerado número de pacientes, condicionando atendimento precário, superficial.
2 – Baixa remuneração aos serviços médicos, condicionando verdadeiro espírito de sacrifício a grande parcela de profissionais da medicina.
Os fatores apontados restringem-se, evidentemente, à assistência pelo Sistema Único de Saúde, o SUS.
Mesmo nos consultórios particulares, com algumas exceções, as consultas são vinculadas a planos de saúde. É cada vez menor o número de pessoas dotadas de recursos financeiros, que se dispõem a pagar os serviços médicos. Também é reduzido o número de médicos que podem rejeitar o vínculo com planos de saúde.
O seguro saúde evidentemente é rendoso, como se comprova pelo número de planos oferecidos por bancos, companhias de seguro e empresas multinacionais.
O sistema previdenciário, por sua vez, é precário porque é excepcionalmente grande a demanda. Não distingue ricos e pobres. Todos são nivelados. Os pobres, porque não tem outra alternativa. Os que dispõem de recursos financeiros tem os mesmos direitos, desde que o desejem e submetam-se às condições do sistema.
Há que considerar, outrossim, a população de classe média, a mais numerosa, de trabalhadores das mais variadas categorias, os quais, certamente com sacrifício, filiam-se a algum plano de saúde. Quando necessitam de tratamento diferenciado, nem sempre coberto por seu contrato no plano de saúde, são condicionados a apelar para os serviços do SUS.
Apesar de todas as dificuldades, a classe médica empenha-se na realização de pesquisas e congressos, com vistas à evolução profissional e, especialmente, ao bem social. Afinal, a medicina é um sacerdócio, por ser, mais do que profissão, verdadeira missão. Por maiores que sejam os percalços a enfrentar, prevalece o bem-estar do doente. O médico tem que ter estrutura capaz de camuflar os próprios sentimentos e conter suas reações, para que possa projetar uma imagem que ofereça segurança, tranqüilidade e confiança aos doentes.
Da mesma forma como é verdade que toda criatura humana tem um pouco de médico, precisamos, e os médicos particularmente, imitar os palhaços, no grande circo que é este mundo em que vivemos. Todo palhaço, mesmo na amargura, aparenta alegria, que transmite aos expectadores.
Aliás, a imitação desses profissionais da alegria, que são os palhaços, tem sido comum, especialmente nos hospitais infantis.
Para que possa desempenhar a profissão da misericórdia que é a medicina, o médico precisa cultivar uma outra grande virtude, que é a humildade. Deve conscientizar-se da verdade de que, quanto mais aprendemos, tanto maiores nossas dúvidas.
É de Miguel Couto esta assertiva:
?A medicina é a mais difícil de todas as ciências. Ela se funda em um número enorme de conhecimentos, e ainda maior de desconhecimentos, uma coorte de noções, de idéias, de princípios emaranhados, um sem-conto de ensaios, pesquisas, provas e contraprovas, e sobre tais elementos, que quase sempre se escondem e se mascaram, há de o médico tecer a sua lógica indutiva, até atinar com a doença?.
E pergunta: ?Que há de definitivo na medicina? Eu quase só conheço nela questões abertas. A nossa bagagem, bem inventariada, encerra muito menos certezas do que dúvidas e, ao cabo, tem mais volume do que peso?.
E adverte: ?Quem em clínica contar com as facilidades, há de estar sempre às voltas com as decepções?.
É verdade que todos esses conceitos do grande clínico que foi Miguel Couto, foram enunciados nas primeiras décadas do século XX, quando os recursos ao diagnóstico eram muito precários, compensados pela observação, pelo esforço, dedicação e insistência do médico na busca dos sinais e sintomas de cada quadro patológico.
Em que pese a incontável gama de recursos à disposição do médico, para o diagnóstico e tratamento das doenças, permanece a certeza de que, quanto mais conhecimentos reunidos, maiores as dúvidas.
À medida que nos elevamos em altura, maior o horizonte com que nos deparamos, o que representa ampliação do espaço desconhecido.
Ary de Christan – membro fundador da Academia Paranaense de Medicina