Luiz Fernando Carvalho conversa com o repórter, pelo telefone, em uma tarde deste mês de julho. “Estou no meu canto”, informa, e fazendo o dever de casa. Carvalho destrincha o bloco de capítulos de Velho Chico que acaba de receber. Após alguns percalços iniciais, a novela, como o rio, encontrou seu curso. Vem de longe a parceria do mais importante diretor da TV brasileira com Benedito Ruy Barbosa. “Baseado na confiança, ele me autoriza a mexer nos capítulos, se julgo necessário”, diz Carvalho. Não tem sido preciso. A parceria de Benedito com o neto tem dado certo. “Ele tem todas as chaves do melodrama, é um grande teledramaturgo, e o Bruno (o neto) está cheio de entusiasmo, querendo incorporar coisas novas.” O diretor está satisfeito, o público está OK – os índices superam os de muitas novelas que seriam salvadoras da pátria e não foram.

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Para Carvalho, Velho Chico está sendo ‘um milagre’. Ele trabalhava na montagem de Dois Irmãos, sua minissérie já mitológica adaptada do romance de Milton Hatoum, quando a Globo chamou-o para apagar um incêndio. A novela anunciada das 9 estava sendo adiada e, em dois ou três meses, teria de entrar no ar uma substituta, e seria Velho Chico. Diretor/autor – uma raridade na televisão -, e muito meticuloso, acostumado a trabalhar no seu ritmo, Carvalho teve de fazer o que não gosta – se apressar. Poderia ter dado errado. Os deuses da (tele)dramaturgia o protegeram. Velho Chico é, como ele diz, um milagre. Mas a entrevista não é para falar sobre a dramaturgia. Nem sobre o elenco – bem, um pouco. O tema é a fotografia de cinema de Velho Chico.

Têm havido outros experimentos, mas até o mais distraído dos telespectadores já se deu conta de que existe algo especial na luminosidade e textura das imagens de Velho Chico. Aqueles tons terrosos no núcleo pobre, as luzes que se refletem nas águas do rio e as cores fortes, o barroco carregado do interior da casa dos ricos. “A luz é personagem, e das mais importantes”, avalia Carvalho. Mesmo pressionado pelo tempo, ele fez como sempre. “Tenho meu galpão de treinamento, onde reúno toda a equipe. Atores, técnicos, costureiras, cenógrafos, aderecistas. A gente conversa, eu levo gente que tem como contribuir.

Estabelece-se o conceito, e o de Velho Chico foi de que teríamos isso que você chama de fotografia de cinema.” E Carvalho dá uma aula – “Fotografia é luz. Estamos trabalhando com terra, com água. A paisagem é forte. E temos as pessoas. Decidi, com o Frutuoso (diretor de fotografia), que íamos usar refletores de filamento, que são mais antigos, mas oferecem uma textura mais quente, mais marcada, e essa é a realidade que buscamos na novela.”

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Nesta segunda, 25, a sinopse prometida anuncia o seguinte – Piedade tenta convencer Santo a não ir ao evento na igreja. Afrânio quer atrapalhar a homenagem a Belmiro. Miguel despreza Tereza. Afrânio afirma a Carlos que se vingará de Padre Benício. Iolanda tenta convencer Miguel a desculpar Tereza. Bento repreende Luzia. Tereza e Miguel fazem as pazes. Iolanda tem uma visão ao tocar as mãos de Olívia. Martim ouve as ordens que Afrânio dá para Cícero e alerta Santo. E Santo vence a disputa com Cícero e entrega o boi para Tereza. Agora que você já sabe, prepare-se, e preste atenção nas cores, e nas texturas. Apesar de todo o empenho no trabalho do galpão, chega um momento em que Carvalho pede a sua equipe que não tenha medo de errar – que se abra ao mistério da criação, ao indizível.

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Existe uma filosofia de trabalhar no estúdio, que tem um ambiente controlado, da mesma forma que se trabalha nas externas de Velho Chico. “As câmeras são as mesmas e o que tento fazer é estabelecer o mesmo desenho de luz para os dois ambientes.” Na verdade, o grande projeto de Velho Chico é esse desejo do autor (Carvalho) de reeducar o olhar do público. “Quero acreditar que o público se dá conta de que a luz está entrando diferente. Que está batendo de uma forma mais emocional. Se a ideia é resistir, não há resistência sem memória”, avalia o diretor. Em Velho Chico, detalhe técnico, o ‘switter’ fica dentro do estúdio, o que impacta na lógica do cabeamento e das câmeras, e torna o processo mais próximo, mais orgânico. E, depois de tudo isso, na pós-produção, há um efeito chamado de ‘color grading’. Luiz Fernando Carvalho e Frutuoso destacam a importância de Sérgio Pasqualino na finalização. “Esse tratamento final, que dá a cor, impõe a textura característica de Velho Chico. Na novela, cada personagem tem uma fotografia, que ajuda também a compor a narrativa da história.”

A síntese de toda essa elaboração talvez seja a personagem de Cristiane Torloni. Carvalho fica mudo do outro lado da linha. Alô, você está ouvindo? O repórter desfia suas restrições a Cristiane. No teatro e na TV, eventualmente no cinema, sempre lhe pareceu uma atriz afetada. Aqui, algo se passa com ela. Carvalho concorda – “Cristiane foi de uma entrega muito grande. Reinventou-se no galpão de treinamento, como todo mundo.” O repórter não deixa por menos – “Sabe quem ela me lembra?’, pergunta ao diretor. Ingrid Thulin em Os Deuses Malditos, de Luchino Visconti. De novo, Carvalho fica mudo. Termina por admitir que o barroco viscontiano é sua referência suprema – a maior de todas. De volta a Dois Irmãos, anuncia que tão logo a novela termine, em meados de setembro, ele voltará à minissérie, que a Globo programa para janeiro. Antes disso, e a exemplo de Paolo Sorrentino, que vai mostrar os dois primeiros capítulos de sua primeira série – The Young Pope – em Veneza, Carvalho antecipa, olhem a novidade, que poderá exibir os primeiros capítulos de Dois Irmãos no Festival do Rio. Nós, cinéfilos, agradecemos.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.