Todo ano, Cannes precisa de um escândalo para manter a aura de maior festival do mundo. No passado, starlets mostravam os seios na Croisette e já bastava. Hoje, a polêmica tem de estar na seleção oficial. O franco-argentino Gaspar Noë tem ajudado bastante. “Love ainda não estava pronto quando foi anunciada a seleção deste ano. Mostrei depois o filme para (o diretor artístico) Thierry Frémaux e ele me disse que era o de que necessitava. Mas a versão não estava finalizada e durante 20 dias corri feito louco para mostrar Love na sessão da meia-noite.” O filme estreia nesta quinta, 10, em São Paulo.
Havia uma multidão que gritava o nome do diretor. A sala lotou e, no final, metade aplaudia e metade vaiava. “Aplausos e vaias me acompanham desde o início de minha carreira”, comentou Noë numa entrevista realizada em Cannes. Em outra, na semana passada, por telefone, acrescentou: “Já exibi muitos filmes no festival, mas creio que essa vai ser minha mais bela lembrança de Cannes. O fato de o filme passar num horário que não exigia mais a ‘tenue de soirée’ (o traje de gala) fez com que as pessoas estivessem mais descontraídas. Estava nervoso por meus atores.”
Afinal, Karl Glusman e Aomi Myock não eram profissionais e faziam sua estreia com um filme de sexo explícito, e em 3D. Falos saltando da tela, ejaculações que davam a impressão de respingar no público. Parte da crítica caiu matando. “As críticas elogiosas ajudam os filmes a viver, mas as negativas são mais divertidas”, reflete o diretor. “Críticos de jornais e revistas se esmeraram para ser ofensivos comigo, mas se soubessem… As críticas negativas me estimulam. Produzem desejos de vingança. Mas ainda não tenho nada a caminho para me vingar do que andam dizendo sobre Love.”
Passaram-se seis anos entre Enter the Void e Love, ambos exibidos em Cannes. E 13 entre Love e Irreversível, o longa de Gaspar Noë que as feministas mais amam odiar. Monica Bellucci fazia a mulher estuprada numa passagem subterrânea para o metrô. O filme virava uma história de vingança, narrada de trás para a frente. Dois anos antes, Noë se aproximara de Monica, ainda casada com Vincent Cassel, com a proposta de filme que virou Love. “Ambos se assustaram com as cenas explícitas, e eu confesso que nunca entendi como, tendo recusado isso, ela topou o estupro de Irreversível. Mas foi melhor para Love. Monica e Vincent já eram celebridades. Teria sido diferente mostrá-los copulando. Meu casal agora é anônimo, e isso dá outra dimensão ao filme.”
Há 15 anos, Noë sonhava com um filme sobre a paixão amorosa. “O cinema fala muito de amor e sexo, mas, na realidade, não se filma a paixão. (Alain) Resnais mostrou como funciona o cérebro humano em Meu Tio da América, mas esse funcionamento, aplicado ao sexo, como se filma? Admito que, antes de mim, (Abellatif) Kechiche filmou lindamente a paixão em Azul É a Cor Mais Quente. Mas o filme dele é sobre um par de mulheres, não tenho nenhum problema com isso. Só que eu queria um casal hetero.” Foi a chance de Glusman e Myock. “Ela nem é atriz. Aceitou fazer o papel como experiência de vida. Ele foi corajoso. Representar excitado não é para todo o mundo. Mas a verdade é que não dirigi nenhum dos dois. Levei muito a sério o que me disse Benicio Del Toro, que contou que (Steven) Soderberg é seu diretor preferido porque nunca lhe diz o que fazer. Não tinha um roteiro convencional. Tinha cenas, uma estrutura, sugestões de diálogos. Armava a cena, colocava os atores em posição e dizia ‘Agora, é com vocês’. Funcionou.”
Mas alguns momentos geraram tensão no set. “Queria que o casal comprasse um consolo e brincasse com o membro artificial. Ela disse que de jeito nenhum introduziria uma coisa daquelas diante da câmera. Respeitei. Não sou o machista monstruoso que as feministas pintam.” Sobre o escândalo, ele diz que não o busca. “Não conheço filme que tenha provocado mais escândalo que Saló. (Pier-Paolo) Pasolini era escandaloso? Era um polemista que queria refletir sobre a permanência do fascismo em seu país. Ruggero Deodato foi chamado de escandaloso por Canibal Holocausto, e hoje o filme é cultuado. Um dia, as pessoas vão entender que estou dessacralizando o sexo para falar de paixão. E de amor.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.