Um grande filme às vezes demora a fazer seu caminho. “O Som ao Redor” começou recusado por um festival (Brasília) e perdeu o prêmio principal para um concorrente apenas simpático em Gramado, até vencer a Première Brasil no Festival do Rio de 2012. Teve ótima carreira internacional em festivais alternativos e caiu na graça da imprensa cinematográfica. Foi incluído pelo “New York Times” entre os dez melhores filmes de 2012. Não sem motivos, críticos o consideram o mais importante filme nacional dos últimos anos. Para quem não o viu, ou deseja revê-lo, “O Som ao Redor” sai agora em edição bastante completa, com dois DVDs. A coleção de extras inclui a versão comentada do filme pelo próprio diretor, Kléber Mendonça Filho, além de making of e cenas não utilizadas na montagem final. Traz algumas entrevistas concedidas pelo cineasta e gravações de debates dos quais participou. Por fim, inclui curtas-metragens do cineasta, como “Vinil Verde”, “Eletrodoméstica” e “Recife Frio”, entre outros. Vendo-se os curtas, acompanha-se o processo de depuração estética do diretor e seu caminho rumo ao longa de estreia na ficção.
O filme abre com uma exposição de fotos em preto e branco que evocam um Pernambuco rural e arcaico. Corta, de maneira abrupta, para o Recife contemporâneo, no qual algumas crianças brincam na área de lazer do condomínio. Esse corte anuncia algo que estará presente ao longo de toda a história – o confronto entre passado e presente. Ou melhor, de que maneira o passado não desaparece, como se pensa ingenuamente, mas se recicla em presente. O Som ao Redor é, em todas as medidas, um filme que toma o pulso da História e, portanto, da política.
Nesse quarteirão do Recife (filmado no bairro Setúbal), quase todos os imóveis pertencem ao patriarca, Francisco (W.J. Solha), senhor de engenho que requenta o capital rural no mercado imobiliário. Seu neto, João (Gustavo Jahn), ajuda a vender e a alugar os apartamentos, embora deteste o trabalho. Ele começa a namorar Sofia (Irma Brown) e o romance dos dois engata como linha afetiva a costurar a trama. Outros personagens se apresentam: Bia (Maeve Jinkings) é a dona de casa estressada que obriga os filhos a aprender mandarim e fuma maconha para conseguir dormir à noite. Anco é filho de Francisco e mora numa das últimas casas da região, como outras no Recife (e em todas as metrópoles do País), devastada pela especulação imobiliária.
Em poucas palavras: “O Som ao Redor” cria, nesses primeiros movimentos, um microcosmo da sociedade brasileira, no qual a elite econômica (seu Francisco e parentes) convive com a classe média (Bia e outros) e, ambas, com os “serviçais” – empregadas domésticas, porteiros, vigias noturnos, lavadores de carros, entregadores de água, etc. As relações de classe insinuam-se e mesclam-se, num tom de clara sutileza. A elite trata seus empregados de maneira bonachona, paternal, mas, apenas com uma entonação de voz, ou um olhar, repõe a distância intransponível que existe entre eles. Menos segura de si, a classe média mostra-se mais brutal e estabelece as diferenças no grito, como faz Bia com sua empregada. Nesse delicado mecanismo de relojoaria cinematográfica, vemos em funcionamento o tempestuoso relacionamento de classes à brasileira. O filme é dividido em capítulos. Este primeiro, apresentação dos personagens, tem por título Cães de Guarda.
No segundo, Guardas Noturnos, vemos a ascensão de outras figuras que chegam ao pedaço. São chefiadas por um certo Clodoaldo (Irandhir Santos), melífluo agente de segurança que oferece seus serviços para garantir a tranquilidade do bairro. A composição de Irandhir é brilhante. Clodoaldo é gentil e mesmo servil; na contraluz de suas palavras, sente-se a ameaça, como um ruído de fundo. Melhor comprar a “segurança” e não ter dores de cabeça. Seu encontro com o patriarca é de antologia. Francisco fala direto, como convém a um senhor de engenho acostumado a ma,ndar. O outro responde nas entrelinhas.
De qualquer forma, o quarteirão passa a conviver com Clodoaldo e sua equipe, instalados sob uma tenda em uma das esquinas do bairro. Eles tudo veem e tudo controlam. A passagem para o terceiro capítulo, chamado Guarda Costas, será mera decorrência da lógica da história, com uma surpresa embutida no enredo e que só se desvenda nos últimos minutos.
O fato de a trama se fechar como um mecanismo de precisão não esconde sua vocação fragmentária. As linhas de ação se desenvolvem em paralelo e algumas têm perfis notadamente anticlimáticos, como a da dona de casa Bia, às voltas com o marido nulo, seus filhos, a carência sexual, os latidos de cão que não a deixam dormir. Assim também é o romance intermitente entre João e Sofia, e o cotidiano dos seguranças. Há pequenas pérolas, aparentemente descosidas, como a reunião de condomínio convocada para despedir o porteiro, e que traça, em pinceladas rápidas, a mentalidade de classe média expondo sua relação utilitária com os empregados.
“O Som ao Redor” possui um andamento tranquilo, dando-se tempo necessário para que todas essas tramas sejam desenvolvidas. Necessita desse ritmo alongado para incorporar elementos em seu projeto ambicioso. Por exemplo, para mostrar como a estrutura senhorial permanece no presente, leva os namorados João e Sofia para um passeio ao engenho do avô, em Bonito. Há um momento em que o casal visita a senzala, situada abaixo da casa grande, e ouve os passos de Francisco, caminhando acima. Tudo está nessa cena. Inclusive a referência ao grande clássico da sociologia brasileira, “Casa Grande & Senzala”, do pernambucano Gilberto Freyre. Também na fazenda, quando Sofia, João e Francisco tomam banho de cachoeira, por um instante as águas se toldam de vermelho. Há um passado de sangue na estrutura de classes da sociedade brasileira. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.