O Gebo e a Sombra é um filme de Manoel de Oliveira, baseado numa peça dos anos 1920 do dramaturgo português Raúl Brandão. O espectador vai notar, logo de início, a estrutura teatral preservada. Fora algumas raras cenas, como a de abertura, tudo se passa no interior de uma casa modesta. Na verdade, numa sala, na qual o velho contador, Gebo (Michael Lansdale), faz e refaz suas contas. Escreve em seus livros, esfalfa-se à luz precária de um candeeiro para sustentar a mulher, Doroteia (Claudia Cardinale) e a nora, Sofia (Leonor Silveira).
Nessa primeira cena, vemos um personagem, que depois descobriremos quem é, num porto, ao lado de um navio ancorado. O ambiente evoca viagem, aventura. Todo porto ocupa esse lugar no imaginário humano. De Ulisses a Ismael, o protagonista de Moby Dick, que tomava o primeiro navio disponível quando a ideia de morte começava a lhe rondar a cabeça.
Este personagem é João, filho do Gebo, interpretado por Ricardo Trêpa, neto de Manoel de Oliveira. Habitué dos filmes mais recentes do avô. Não sabemos de início se João é um Ulisses desgarrado ou um Ismael em crise, mas logo a suspeita se lança de que talvez seu caráter errante não seja assim tão nobre.
De início, afora essa breve cena inicial, que termina com algo parecido com um crime ou um assalto, que não se vê bem, João é apenas um nome, mencionado na sala de jantar. Nos diálogos entre Gebo e Sofia, sogro e nora, entende-se que ele sumiu do mapa. Evadiu-se, saiu da vida da família, deixou a mulher, e por um motivo que deve ser escondido a todo preço da mãe, Doroteia. Gebo mesmo diz que consagrou sua vida a mentir, e que, quando Doroteia lhe pergunta pelo filho, tem de recorrer a uma imaginação digna de escritor de folhetins.
Seja quem for, João é um herói para sua mãe. E como poderia ser diferente? Os filhos não são sempre heróis para as mães? Desse modo o Gebo, com suas respostas lacônicas e mesmo com suas mentiras, não deixa de ser uma espécie de mantenedor do mito materno a respeito do filho. Ele prefere morrer, como diz, a permitir que Doroteia saiba a verdade sobre o filho. Ela, como nós, permanecerá na ignorância, pelo menos até o próprio João aparecer na casa. E ele o faz durante uma pequena reunião social na qual, além dos protagonistas, estão presentes uma velha vizinha, vivida por Jeanne Moreau, e um amigo do Gebo, interpretado por Luís Miguel Cintra. O Gebo e a Sombra é um projeto de risco, que consegue reunir um elenco como este. Isso para se ter ideia do prestígio internacional de Manoel de Oliveira, 104 anos de idade quando rodou o filme.
Projeto ousado mesmo. Além da estrutura teatral indisfarçável, mas que, por milagre da direção, se transforma em cinema da melhor qualidade, o diretor constrói um ambiente soturno. A fotografia, extraordinária, é feita de meios tons, de claros e escuros, iluminada apenas pelos candeeiros que se veem em cena. É a fotografia desejada quando tudo é dito pela metade, nunca de maneira direta, num ambiente que por vezes parece um sonho, como nos poemas dramáticos de Fernando Pessoa.
Há em cena aquela melancolia portuguesa, um sofrimento arraigado e autoconsciente, que parece tão característico quanto um traço da psicologia nacional. Ao mesmo tempo, evoca esse ambiente de Dickens, em que a pobreza domina. Não a miséria, mas quase. A mesa parca, o frio, a vida medíocre, as economias. Tudo tão pequeno, tão, no fundo, dependente do dinheiro (ou de sua falta) que, num momento, se revela o tema profundo deste O Gebo e a Sombra. De fato, a peça de Brandão e o filme de Oliveira debatem-se em torno do dinheiro.
Ele é o móvel para a ação de João. O dinheiro, ou sua ausência, é a causa da vida minúscula da família. Por isso, num momento, Doroteia recrimina o Gebo por ele nunca ter sabido aproveitar oportunidades para crescer. E a única coisa que ele tem a dizer é que é um homem honesto. Eis a sua bandeira de honra, que no entanto parece insuficiente aos olhos da esposa e dos amigos. Sobretudo quando se trata de um contador, como ele, sempre às voltas com um dinheiro que não possui. Mas que o possui, como possui a todos. De João à velha vizinha, a inesquecível Candidinha, vivida por Jeanne Moreau, que acaricia uma bolsa cheia de cédulas e pensa, em voz alta, como seria bom possuí-lo, para ter as coisas, para poder mandar nos outros. Dinheiro é igual a poder.
Assim, O Gebo e a Sombra é um drama sobre a honestidade, ou sobre a cobiça. Ou, o que resume tudo, sobre o dinheiro, e de como a relação com ele define as pessoas. Um cínico diria que todos são iguais perante o dinheiro, e essa é a moral da nossa época. Mas o cínico, como se sabe, sempre supõe que os outros sejam iguais a ele. Nem sempre está certo, e as exceções são como pontos de luz no céu escuro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.