Tony Gatlif define-se como um diretor militante. “Pertenço a uma geração de autores que acreditavam e ainda acreditam no cinema como instrumento de compreensão e mudança do mundo.” Cineasta de origem cigana, Gatlif sabe que ocupa um lugar à margem no cinema francês. “Estou integrado à cultura francesa, faço filmes para o mercado, mas não de mercado. Na França, produzem-se hoje comédias que batem e até ultrapassam 20 milhões de espectadores. Meu público é mais modesto, mas é fiel. Gerônimo bateu nos 250 mil espectadores”.
Gerônimo é justamente o novo filme de Gatlif, que estreou na quinta, 23, nos cinemas brasileiros. O diretor conversou com o repórter pelo telefone, de Paris. Contou como foi a gênese do filme. “Estou sempre buscando temas com o pé na realidade. Por temperamento e formação, não sou muito dado a fantasias.” Gerônimo começou a nascer quando Gatlif presenciou uma briga de rua. “Dois clochards (sem-teto) partiram da ofensa para a agressão, cada um com sua faca na mão. E aí, de repente, uma mulher se colocou no meio deles e foi tão veemente que ambos depuseram as armas. Impressionou-me aquela figura feminina. Trouxe-me à lembrança um educador que conheci e que foi fundamental em minha vida. Hoje tem quase 90 anos. Se não fosse ele, talvez eu mesmo tivesse sido um desses garotos de rua sem perspectivas na vida.”
Embora o nome evoque o célebre chefe índio que apareceu em tantos westerns, Gerônimo é como se chama a educadora do filme de Gatlif. Ela vem, como o diretor, de uma família de ciganos. E na ficção que ele criou, Gerônimo tenta ajudar casal jovem cujo amor está sendo destruído pelas disputas entre suas famílias, pertencentes a clãs litigiosos de ciganos e turcos. Como é que é? Jovens, famílias rivais, conflitos? “Para dar sustentação dramatúrgica ao filme que começava a se desenhar na minha imaginação, senti que devia recorrer ao mito. E vali-me do mito de Romeu e Julieta. Em todo o mundo, em qualquer língua ou cultura, eles representam o amor jovem em choque com as instituições do mundo adulto. São universais.”
Trabalhar com o mito é uma coisa que sempre fizeram os cineastas mais engajados, os mais militantes. “É só conferir a obra de (Pier Paolo) Pasolini, de Glauber (Rocha).” Como bom francês, Gatlif diz ‘Globér’. Ele ama Glauber Rocha, é uma de suas referências permanentes – na arte como na vida -, mas, curiosamente, seu filme brasileiro favorito é Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. “É um dos filmes mais rigorosos e intensamente humanos que já vi. A cena da cachorra (Baleia) permanece como uma de minhas mais vívidas sensações ou lembranças no cinema.”
Romeu e Julieta sem Capuletos nem Montecchios, mas entre ciganos e turcos. Gatlif não toma outro partido que não o da educadora, e o dos jovens. “Não é um filme com heróis e vilões. Estaria traindo minhas crenças, se o fizesse de forma maniqueísta. Ao mesmo tempo, interessa-me explorar as diferenças culturais. Boa parte do colorido do filme vem daí.” O mundo cigano, que Gatlif tanto ama, é o dele. O restante da intensidade, como ele diz, vem da interpretação. “Sabia, ao escrever meu material, que o filme ia depender muito da atriz que fizesse o papel da educadora. Jamais considerei fazer esse filme com um homem, e não apenas porque me inspirei naquela mulher na rua. Achava que, para que ele fosse moderno e chegasse ao coração dos jovens, teria de ser uma mulher. Sua força seria a do filme.”
Céline Sallette, que faz o papel, foi, como diz Gatlif, um achado. “Desde que a vi senti que não precisaria procurar mais. Céline está na casa dos 30 anos. Está mais próxima deles (dos jovens) que de mim. No set, ela falava a língua deles e, quando a câmera gravava, possuía uma qualidade que fazia da sua educadora uma cúmplice. Havia compreensão, não autoritarismo. Acho que os jovens precisam de orientação, de firmeza, mas não de autoritarismo. Foi assim com meu instrutor e comigo. Ele fez de mim um homem melhor, um artista, sem nunca gritar comigo.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.