No final de Amar, Beber e Cantar, que estreia nesta quinta-feira, 24, uma mulher jovem posta-se diante da sepultura de um homem mais velho, a quem conheceu (e admirou). A cena lembra muito o fim do filme anterior de Alain Resnais, Vocês Ainda Não Viram Nada, e o cinéfilo que conhece a obra do diretor sabe que o cemitério é um tema recorrente em seus filmes. Mas, desta vez, algo ocorre – Amar, Beber e Cantar concorreu no Festival de Berlim, em fevereiro, e ganhou o prêmio da crítica como melhor filme da competição, por aquilo que o júri presidido pelo crítico Michel Ciment, da revista Positif, definiu como a eterna juventude e criatividade do cineasta.
Resnais, aos 91 anos, teria apresentado o filme mais original e ousado da Berlinale, segundo a justificativa. Duas semanas depois, em 1º de março, Resnais morreu, em Paris. A última imagem do novo filme, que passa a ser o último, ganha assim caráter premonitório. E o filme, como muitos críticos dizem, virou o testamento artístico de um dos maiores nomes do cinema.
Evita-se um pouco utilizar a definição de ‘autor’ para Resnais, embora ele o tenha sido, e dos maiores do cinema. Mas o próprio Resnais, que nunca escreveu um roteiro na vida – por incrível que pareça, tinha escrito o do que seria seu próximo filme -, preferia, mais modestamente, em vez de colocar sua assinatura, dizer que o filme era ‘realizado’ por ele. Só que a sua marca era tão forte que nem precisava de assinatura. Desde Hiroshima, Meu Amor, de 1959, Alain Resnais fez avançar a arte e a linguagem, a política e a própria conceituação do cinema. E desde Mélo, de 1986, pelo menos, todo mundo sabia de sua fascinação pelo teatro.
Amar, Beber e Cantar é um pouco um Resnais menor, principalmente se comparado às suas maiores obras. Mas a verdade é que esse filme dito menor concentra todo Resnais. Os prêmios da Berlinale (o da crítica e o do júri oficial) justificam-se, e o curioso é que Resnais ganhou com o primeiro longa (Hiroshima) e este último, o reconhecimento da crítica.
Impressionante
Em Berlim, falando pelo marido – além de atriz, era sua musa -, Sabine Azéma comparou Resnais a um mágico. Seria un magicien du film, como ela disse. E um raro tipo de prestidigitador. Resnais, que não conseguiu concretizar seu sonho de fazer uma versão de Mandrake, tinha sempre todo o filme na cabeça e quando terminava a montagem, não sobrava nada. Ele já filmava sabendo exatamente o encadeamento dos planos. Não desperdiçava. Já era assim desde Hiroshima e até antes, desde seus admiráveis documentários de curta-metragem, quando esculpiu uma estética do tempo, e da memória. Com a evolução, não é que a memória tenha se diluído no cinema de Resnais, mas o tempo e o espaço, tratados em bloco, passaram a constituir um imaginário. Amar, Beber e Cantar é sobre um grupo de atores que descobre que um amigo está gravemente enfermo e tem somente alguns meses de vida. Isso abala o coletivo, que ensaia uma peça.
A um grupo de jornalistas, Sabine contou, em Berlim, que Resnais teve uma iluminação quando, jovem ainda, viu num teatro de Paris, em 1939, a montagem de A Gaivota, de Chekhov, por George Pitoeff. Apaixonado pelo teatro – como artifício e representação -, ele nunca foi um ‘realista’, no sentido estrito do termo. O cinema de Resnais pensa e reflete a realidade, mas por meio da teatralidade. Basta lembrar da câmera correndo pelos corredores de Marienbad para explodir em luz na persona esculpida de Delphine Seyrig como um pássaro, com aquele vestido de penas.
A teatralidade, o teatro, está de volta em Amar, Beber e Cantar, que marca mais uma parceria de Resnais com o dramaturgo inglês Alan Ayckbourn. Com ele, Resnais fez o díptico Smoking/No Smoking, de 1993, inspirado na peça Intimate Exchanges, e Medos Privados em Lugares Públicos, adaptado do texto de mesmo nome, em 2006 (e o filme se chamava Coeurs/Corações, no original).
Representação
Amar, Beber e Cantar baseia-se em Life of Riley. A peça de Ayckbourn dispensa os interiores e se passa em quatro jardins, como se o autor, ao refletir sobre o casal burguês, estivesse seguindo uma ideia de Luis Buñuel em O Discreto Charme da Burguesia, de 1971. Buñuel comparava a vida dos burgueses a um teatro. Nada era verdadeiro, pura representação. No novo Resnais, há um estranhamento porque, ao mostrar os casais de atores que ensaiam a peça sobre casais, Resnais (e Ayckbourn) não estabelecem claramente os limites entre o que seria a realidade e a ficção.
Tudo é fake – as fachadas das casas são cortinas pintadas, o gramado é artificial, o sol é uma lâmpada potente, etc. A própria interpretação dos atores não é realista, e nisso, apesar das diferenças, o último Resnais aproxima-se de outro ótimo filme em cartaz, O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson.
Sabine Azéma e Hippolyte Girardot, dois habitués dos filmes do diretor, formam um dos casais (da realidade e da ficção). Gesticulam muito. Ao repórter, Sabine explicou – “Essa é a nossa contribuição (dos atores). Alain nos escolhe pela voz, e nos incentiva a usarmos todas as nossas modulações. Ele nos veste, posiciona em cena, mas com alguma coisa temos de contribuir, e ele espera justamente que a integralidade física venha do que a gente lhe oferece. Como ele trabalha muito com os mesmos atores, a gente entra no clima muito rapidamente. Sou até suspeita para dizer, mas a filmagem é sempre um prazer. Nada de tensão, todo mundo consegue ser tão criativo quanto profissional.”
Quase centenário, Resnais podia gostar de repetir os integrantes de sua equipe – o cenógrafo Jacques Saulnier o acompanhava há décadas -, mas também estava sempre disposto a agregar. Amar, Beber e Cantar foi seu primeiro filme com o diretor de fotografia Dominique Boilleret e também com a atriz Sandrine Kiberlain. “Alain ama as mulheres e me disse que há tempos vinha seguindo meu trabalho. Ele gostou particularmente de Mademoiselle Chambon (de Stephane Brizé, 2009) e achou esse papel que se ajustava a como ele me via. Tive um encontro muito feliz com ele e adorei ser integrada à família Resnais. Ele já me disse que estarei no próximo filme.” Infelizmente, esse próximo filme nunca mais virá à luz, mas o importante é que a parceria funcionou, e bem, pelo espaço de Amar, Beber e Cantar.
Depuração
André Dussolier, presença permanente da família Resnais desde Mélo, adora particularmente o título. “Que melhor definição para a vida? Amar, Beber e Cantar. Alain já atingiu um grau de depuração tão elaborado que não precisa mais do grande tema para fazer um grande filme.” Sabine Azéma, talvez minimizando a precariedade do estado de saúde do marido – afinal, ele morreu dias depois -, dizia que Resnais preferiu ficar resguardado em casa a se arriscar aos rigores do inverno berlinense, onde certamente teria de atender a uma demanda muito grande da imprensa. “Ele adora seus livros, seus comics. Não conheço outra pessoa que esteja sempre tão antenada, o tempo todo. É daí que vem a sua energia, a sua juventude como criador.”
Mesmo sem ter realizado o seu Mandrake, Resnais incursionou pelos comics com I Want To Go Home/Quero Ir para Casa, de 1989. Em Amar, Beber e Cantar ele dialoga com a mídia por meio de Blutch, nome artístico de Christian Hincker. Considerado um dos maiores artistas dos quadrinhos na França, ele seduziu Resnais com seu penúltimo livro, Pour en Finir Avec le Cinéma. Há um momento em que o anti-herói da trama e a garota discutem a relação entre teatro e cinema. “Alain teve a ideia de pedir a Blutch que criasse os quatro jardins de Ayckbourn. A parceria expandiu-se por meio dos quadros que fazem as ligações e ilustram a passagem das estações.” Quem fala é o produtor Jean-Louis Livi, e o recurso faz parte dos artifícios narrativos do último Resnais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.