Existe uma indústria da fofoca que corre paralela à dominação que Hollywood exerce sobre os mercados de todo o mundo. O espectador de cinema, seja cinéfilo ou não, é levado a saber tudo o que ocorre com Brad Pitt, com Angelina Jolie. No recente Festival de Gramado, causou surpresa saber que a bela intérprete de O Crítico, de Hernán Guerschuny – Dolores Fonzi -, é, na vida, mulher de Gael García Bernal. Isso não muda nada a apreciação da obra – criminosamente ignorada pelo júri oficial -, mas talvez permita um outro olhar sobre uma atriz ainda pouco conhecida do público brasileiro. Louis Garrel pode não ser o maior astro do cinema francês, mas é certamente o mais desejado, e nesse território aparentemente tão reduzido do cinema de autor, que é onde se exercita. Golshifteh Farahani – quem? – é sua mulher. É a atriz de A Pedra de Paciência, de Atiq Rahimi, que estreou nessa quinta-feira, 21, em duas salas da cidade.
Além de bonita, é talentosa, criando/defendendo uma personagem difícil. O próprio filme é muito complexo. O afegão Rahimi é escritor e dramaturgo e resolveu, ele próprio, verter sua peça para o cinema. Syngué Sabour – Pedra de Paciência teve montagem brasileira em maio, no Sesc Belenzinho.
Nas livrarias, você encontra Terra e Cinzas, entre outros livros do autor. Rahimi nasceu em Cabul, em 1962. Teve educação francesa, e hoje vive exilado na França, mas escreve em dari, dialeto falado no norte do Afeganistão. Ele conseguiu – fez um filme rigoroso. A concentração em poucos ambientes e o largo recurso à palavra talvez teatralizem um pouco A Pedra de Paciência, mas a Rahimi pode-se aplicar a definição que a crítica francesa colou no grande Joseph L. Mankiewicz. Toda tragédia de seu cinema (como de sua escrita) passa pela palavra e a mise-en-scène elabora-se por meio do dinamismo dos diálogos. Na maior parte do tempo, nem são diálogos, mas monólogos dessa mulher que fala consigo mesma – com o espectador ou com Alá.
Ela é mulher de um combatente que está em coma. Tradicionalmente, na cultura muçulmana, a mulher ocupa um lugar secundário em relação ao homem, mas nesse caso ele está imobilizado e depende dela para tudo. Lá fora ruge a guerra e combatentes aliados ou inimigos, não importa, entram e saem das casas em ruínas promovendo um banho de sangue, e pilhando. Cabe à mulher, como pode, ser a provedora da casa – da família. Inicialmente, acreditando na possibilidade de recuperação do marido, ela deve recitar durante 99 dias os nomes de Alá e seu profeta. Mas, como o marido permanece no limbo, ela começa a mudar seu discurso, e a falar de si. Desabafa. Conta tudo o que, naturalmente, lhe estaria interdito, de aspirações e desejos ao duro embate da sobrevivência diária. Abandonada pela família do marido, ela tem só essa tia prostituta. E é a tia que questiona o dogma. O verdadeiro profeta de Alá não teria sido Maomé, mas sua mulher.
O número reduzido de salas, a exibição num circuito seletivo, (quase) sempre associado ao filme dito de arte – que Domingos Oliveira, em sua carta de agradecimento pelo prêmio que ganhou em Gramado (por Infância), preferiu chamar de filme ‘útil’ -, tudo isso talvez condicione A Pedra de Paciência ao olhar de uma minoria capaz de saborear o biscoito fino.
O público de ação está acostumado a filmes para os olhos, não para o olhar, mesmo que existam blockbusters elaborados por grandes artistas. Nesse tipo de filme grande, o ouvido está afinado para o barulho, não necessariamente para as palavras, que reinam num filme como A Pedra de Paciência. É preciso entrar no ritmo do texto, captar sua intenção (e dinâmica), para perceber como a protagonista, essa mulher sem nome, também vai se converter em profeta na complexa teia religiosa e existencial urdida por Atiq Rahimi.
Ao se envolver com o garoto, o soldado gago, ela vai descobrir a sexualidade que não desfrutava com o marido. A voz ganha um corpo, dois perdidos (marginais) na noite escura do Islã e das Jihads. O grande momento – toda a arquitetura dramática converge para isso – é quando ela arranca o marido impotente do limbo.
Os olhos cerrados abrem-se, mas, antes disso, os olhos dela, também metaforicamente fechados, se abrem para a vida, e o mundo.
A palavra, interdita à mulher, faz dela sujeito, e não mais objeto. Mais que uma experiência estética, que também é, A Pedra de Paciência talvez seja fundamentalmente uma experiência humana, e política, que os atores jovens – Golshifteh e Massi Mrowat – levam o espectador a compartilhar. Ele se agarra ao corpo dela como um náufrago, ela, que relatava a violência do sexo, descobre sua doçura. As palavras muitas vezes são duras – a tia contando a rejeição dos tradicionalistas -, mas o sentimento (o amor?) se manifesta por estranhos caminhos.
Na elaboração do roteiro de seu longa de estreia, Rahimi contou com a participação de Jean-Claude Carrière, que foi o roteirista da fase final de Luis Buñuel (e escreveu o volume de memórias do grande diretor, Meu Último Suspiro).
Golshifteh, a mulher de Louis Garrel, é uma atriz iraniana que ganhou projeção em Procurando Elly, de Asghar Farhadi, o diretor de A Separação. Ambos os filmes foram premiados em Berlim, e o segundo ganhou também o Oscar. Por haver integrado o elenco de Rede de Mentiras – o thriller de Ridley Scott com Leonardo DiCaprio -, Golshifteh foi acusada de traição pelo regime dos aiatolás. Ela teria sido corrompida pelo Ocidente. Exilou-se na França. Que seja agora a mulher profeta de Atiq Rahimi talvez seja uma blasfêmia para os ortodoxos seguidores do Alcorão. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.