Livro traz entrevistas do crítico Paulo Emílio Sales

Um Paulo Emílio Sales Gomes mais exposto e incisivo em suas opiniões no que nos textos que escrevia regularmente em jornais e publicações acadêmicas. É o que traz o livro da série Encontros (Azougue Editorial,

R$ 29,90), contendo as entrevistas do nosso maior crítico de cinema, agitador cultural, professor e fundador da Cinemateca Brasileira concedidas a diferentes veículos de imprensa. O organizador do livro, Adilson Mendes, revela-se fiel discípulo de Paulo Emílio morto em 1977. E, na entrevista concedida ao Estado, Adilson, que é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e trabalhou por dez anos como pesquisador na Cinemateca, abre com críticas à situação difícil pela qual atravessa a casa fundada por Paulo Emílio. O livro será lançado dia 31, na Casa Guilherme de Almeida.

Em sua apresentação do livro, você faz a ligação entre Paulo Emílio e a Cinemateca e deplora a situação atual da instituição.

O momento presente da Cinemateca me estimulou a fazer o livro. Foi diante da atual crise da Cinemateca que decidi recuperar o Paulo Emílio polemista. Sua atualidade é enorme. Sua defesa aguerrida de uma instituição de cultura que pensa e preserva o audiovisual nunca foi tão urgente e, infelizmente, tão trágica. E a pergunta que faço – e que imagino que Paulo Emílio também faria – é a seguinte: como uma instituição cultural produz tanto, preserva e difunde a cultura nacional e, de repente, por uma ação destemperada de um ministro, sofre um processo de desmanche completo? A Cinemateca de hoje não recupera, ela destrói.

Esse é um livro de entrevistas de PE. O que encontramos nas entrevistas que não encontramos em seus textos? As duas modalidades complementam-se? Contradizem-se?

Nessas entrevistas, Paulo Emílio aparece mais solto, mais à vontade para expor momentos de sua própria trajetória (sua militância política), exibir preferências (a admiração por Zé Trindade), tratar mais profundamente momentos da história do cinema brasileiro (a pornochanchada), se empenha politicamente pelo cinema (CPI do Cinema). Enfim, o que ele faz nessas entrevistas é radicalizar seus pontos de vista, exagerá-los para que repercutam, para que ultrapassem o círculo pequeno da universidade.

Há ainda dois exemplos do PE entrevistador, com Plinio Sussekind e Eduardo Abelim. Este, aliás, um perfil saboroso. Quais as características de PE nessa modalidade, digamos, jornalística?

Sim, essas duas entrevistas mostram o entrevistador Paulo Emílio, com um jeito próprio de representar o depoente. Na entrevista com o cineasta gaúcho Abelim, o crítico serve-se de um tipo particular de estilo indireto livre, como se a própria escrita incorporasse dados do retratado. Esse procedimento de cunho literário, que inspirou Maria Rita Galvão a fazer um dos maiores livros sobre o nosso pobre cinema, o Crônica do Cinema Paulistano (Ática, 1975), aparece especialmente na entrevista com Abelim, como você notou. A outra entrevista tem mais um caráter histórico, na medida em que retoma Plínio Sussekind Rocha, o grande nome do Chaplin Club (o primeiro cineclube brasileiro que gestou o filme-emblema Limite).

Nas entrevistas concedidas por PE ressalta-se uma característica de certa fase dele: o nacionalismo, a defesa determinada do cinema nacional. Você considera essas posições datadas ou fazem sentido até hoje?

Nacionalismo? Um crítico local defender o protecionismo diante da concorrência desleal estrangeira parece anacronismo nos dias de hoje? Não podemos esquecer que os EUA, os primeiros a atacarem o protecionismo cultural, se serviram em larga medida dele para dominar seu mercado cinematográfico, que no começo do século 20 estava nas mãos dos franceses. Engraçado como na França a exceção cultural é uma questão séria, enquanto que aqui a alcunha de ‘nacionalista’ serve para esvaziar a discussão. Nesse sentido, acredito que as posições de Paulo Emílio ainda possuam certa validade. Mas claro, sua atualidade depende de como elas são ‘historicizadas’, encaixadas em seu tempo e confrontadas com o presente.

Outra coisa notável é a disposição de PE de intervir no debate público através da crítica. Coisa rara, senão inexistente hoje. Você acha que essa abertura da crítica para o mundo, a sociedade, era coisa da época de atuação ou um traço particular dele?

Não acredito que essa disposição em falar abertamente sobre problemas da cultura seja questão de época. O que acho é que a crítica se ‘academizou’, se conformou com um papel menor, voltou-se para problemas de relevância duvidosa e os trata de forma muito pouco inteligente. Hoje, no lugar do debate econômico qualitativo ou do tratamento de questões estéticas informadas historicamente, o que se vê é o debate em torno de datas, nomes e filmes, em geral isolados e de forma estéril, quando não destacando autores estrangeiros em moda, sempre passageira. Para tratar de cinema e do audiovisual de forma abrangente é preciso saber comunicar, é preciso saber escrever e tentar conexões originais que ultrapassem o debate especialista. E isso Paulo Emílio fazia com maestria.

Uma das características do trabalho de PE, como você destaca, é a luta contra o colonialismo cultural. Que se expressa em diversas entrevistas e também em textos famosos, como Uma Situação Colonial e Cinema: uma Trajetória no Subdesenvolvimento. Como esse tema saiu de agenda? A luta de PE foi um fracasso, nesse sentido?

Não acredito que tenha sido um fracasso. O que acontece é que esse debate sofre avanços e retrocessos. E ele não se refere apenas ao debate do cinema, mas da cultura brasileira em geral. Desde Silvio Romero essa questão da colonização cultural é posta e reposta. E quando vejo revistas como a Contracampo ou a Cinética, por exemplo, não posso deixar de pensar em colonialismo, cosmopolitismo abstrato, esnobismo etc. Apesar de elas ultrapassarem essas noções, especialmente a segunda. O colonialismo cultural para Paulo Emílio é algo que todos nós devemos enfrentar. Para ele, o brasileiro não pode deixar de viver pendurado no ocidente e ele deve tentar não viver pendurado no ocidente. Ele tem que tentar fazer uma cultura dele, mas a cultura que ele pode fazer é uma cultura pendurada no ocidente. E dessa dialética surge uma síntese em que o ponto de vista local sai enriquecido pelo confronto – e não pelo culto – com o outro. O que se vê em livros, artigos e teses sobre o cinema estrangeiro é uma barbaridade. Para mim, em grande medida esses trabalhos todos sobre Chris Marker – para citar um exemplo caro aos novíssimos – servem apenas como compêndios de algo que já tem uma vasta produção, já tem sua legitimidade nos centros intelectuais do mundo e que chegam aqui tardiamente e sem qualquer relação com a realidade concreta da esquina nossa de cada dia. Quando penso na quantidade insignificante de trabalhos sobre a obra de Andrea Tonacci, só pra citar um exemplo de um grande, fico convencido que a questão do colonialismo cultural está aí.

Para críticos da minha geração PE é fundamental. Mas noto que para as gerações mais jovens é uma referência que tende a se esmaecer. Você também nota isso? Como fazer para recolocá-lo em seu devido lugar, no centro do debate sobre as relações entre cinema e sociedade, por exemplo?

De fato, noto certa indiferença das novas gerações em relação ao trabalho de Paulo Emílio. E vemos isso, por exemplo, no debate acadêmico da história do cinema brasileiro. Há uma autoproclamada ‘novíssima história do cinema brasileiro’ (apesar de seus membros já terem ultrapassados os verdes anos, alguns até já amarelam) que insiste em chamar pomposamente tudo o que foi realizado antes dela de ‘historiografia clássica’, como se a meia dúzia de estudos feitos sobre o cinema brasileiro chegasse a constituir uma tradição. Além disso, essa sanha revisionista se inspira no trabalho de Michelle Lagny, uma historiadora francesa que buscou definir em rápidas linhas o que foi a pesquisa histórica na França. O fato é que ela não leu direito sequer o Georges Sadoul (cita obras erradas, comenta textos menores), que é o grande historiador deles. Então, essa vontade de fuga para frente, sem resolver as contas com o passado, sem historicizar ultrapassando, esse ímpeto que aparece em Lagny aparece também em trabalhos recentes locais, feitos sem mediações fundamentais. Veja você como o colonialismo cultural tem diversas formas e não é uma simples caricatura.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.U

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