Livro sobre Edith Piaf reúne documentos reveladores

Livros e filmes sobre a cantora francesa Edith Piaf já exploraram quase todos os aspectos da vida da intérprete do clássico La Vie en Rose: o da criança abandonada e criada em bordel, o da devoradora de homens e, principalmente, o da viciada em morfina, musa do submundo parisiense. Um trio de fãs, formado por Jean-Paul Mazzilier, Anthony Berrot e Gilles Durieux, insatisfeito com essas biografias sensacionalistas, decidiu produzir um ensaio alternativo sobre Piaf, que, em gíria da classe operária parisiense, significa “pardal” – passarinho, aliás, muito apropriado para identificar uma cantora raquítica, de 1,42 m, que cantou nas ruas e passou fome.

O ensaio, Piaf. de Môme a Édith, lançado pela editora Martins/Martins Fontes, não tem grandes ambições literárias. É quase um álbum, no estilo das revistas populares dos anos 1950, mas, ainda assim, traz documentos, cartas e fotografias inéditas de Piaf, só ou acompanhada de sua galeria de amantes (de Yves Montand a Théo Sarapo, passando por George Moustaki, sem esquecer sua grande paixão, o boxeador Marcel Cerdan).

Do trio, apenas o ator (de O Dinheiro, de Robert Bresson) e roteirista Gilles Durieux (da cinebiografia Édith e Marcel, de Claude Lelouch) conheceu pessoalmente a cantora. A exemplo de seus coautores Mazzilier e Berrot, é um fanático por Piaf, a ponto de viajar quilômetros atrás de um pequeno mimo da Môme. Foi assim que conheceu Marc Bonel, acordeonista que acompanhou Piaf – de 1945 a 1963 – e um de seus primeiros biógrafos. Durieux escrevia o roteiro para Lelouch quando descobriu que os Bonel guardavam tudo de Piaf, de caixas de fósforos de cabarés aos cadernos de escola em que ela escreveu suas primeiras canções, além de horas de filmes com suas turnês.

Já Mazzilier, que tinha 11 anos quando Piaf morreu, começou a colecionar suas fotos quatro anos depois, curiosamente quando suas canções foram substituídas nas rádios pela música dos Beatles. Foi justamente em 1966 que ele também conheceu Bonel e sua mulher Danielle, secretária e confidente de Piaf. De forma generosa, o casal compartilhou com ele a “verdadeira” história da cantora – mais de 50 biografias foram escritas sobre ela, quase todas repletas de exageros.

Mazzilier já montou exposições com sua coleção, enriquecida com as imagens de Charles Sinclair, fotógrafo oficial da cantora. A viúva de Sinclair, Michelle, deu a Mazzilier tudo o que estava no estúdio do marido. Isso aconteceu pouco depois de sua morte. “Ela me arrastou até o carro que estava num estacionamento, abarrotado de caixas cheias de fotos e filmes rodados no ABC (music hall parisiense)”, conta. São essas imagens que chegam aos fãs de Piaf no livro. O outro autor, Anthony Berrot, o mais jovem do trio, conheceu Mazzilier na citada exposição que ele fez de Piaf. É igualmente um fanático colecionador de imagens relacionadas à carreira da cantora.

O principal mérito de Piaf – de Môme a Edith é buscar uma correspondência analógica entre as letras realistas de suas canções e os traços biográficos de uma cantora que foi uma espécie de Gelsomina de As Noites de Cabíria – após viver num bordel com a avó, ex-domadora de pulgas, ela passou a ocupar uma carroça de circo na Bélgica com o pai Louis Gassion, cujo maior talento era andar de cabeça para baixo, quando não estava totalmente bêbado (Fellini, amigo de Piaf, eventualmente se inspirou na história). Sem habilidade para as artes circenses, Piaf foi rodar a bolsa nas ruas e tentar a sorte como cantora, até encontrar Louis Leplée, um gay dono de cabaré (o Gerny’s) que lhe deu a mão e morreu assassinado (o crime levou a cantora a ser interrogada pela polícia).

O livro não evita temas escaldantes como esse e as inúmeras internações da cantora para se livrar das drogas (numa das fotos, de 1962, ela aparece ao lado do jovem Théo Sarapo, com quem se casou, amparada por ele e pelo parasita Claude Figus que, dispensado por ela, se matou em 1963). Com tantos dramas no currículo, parece natural que Jean Cocteau tenha se interessado não só por sua voz, mas pela mulher inquieta e insegura que dizia numa de suas canções (Je ne Regrette Rien) não se arrepender de nada. Cocteau sentenciou: “Édith Piaf nunca existiu, nem existirá”. Era, segundo o poeta e cineasta, uma mulher invisível, como a amante ignorada da peça O Belo Indiferente, escrita por ele em sua homenagem (na peça, Cocteau narra a relação assimétrica de Piaf com o ator Paul Meurisse, que passa o tempo lendo jornal, indiferente aos seus apelos).

Desprezada por amantes, usada por outros, ela encontrou nas mulheres uma chance de entender melhor sua condição – e o livro mostra como a amizade da atriz alemã Marlene Dietrich foi importante nesse sentido. É um aspecto que o livro e o filme Piaf – Um Hino ao Amor (2007), de Olivier Dahan, poderiam ter explorado.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo