Marcelo Moutinho é um escritor com olhar aguçado – enquanto a maioria das pessoas concentra o olhar nas belezas naturais da cidade do Rio de Janeiro, ele, nascido e criado em Madureira, busca as áreas menos privilegiadas, onde vivem personagens comuns, às vezes vivendo à margem, quase na invisibilidade social. É ali em que ele busca inspiração para histórias banais, mas extremamente humanas. É o que se observa em seu novo livro de contos, Rua de Dentro (Record), que ele lança nesta terça, em São Paulo, na Livraria da Travessa.

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São 13 histórias curtas que privilegiam os detalhes, cuja beleza lírica se revela lentamente. Afinal, seus personagens não despertam imediata atenção, mas, à medida que se conhecem seus sonhos e asperezas, a identificação se solidifica. Moutinho consegue provocar surpresas pela simples forma de utilizar as palavras – como no conto inicial, Purpurina. Sobre isso, respondeu, por e-mail, as seguintes questões.

Qual a relação que esse livro tem com o anterior, Ferrugem, que também apresenta o cotidiano de personagens pouco representados na literatura brasileira contemporânea?

As duas obras se aproximam na perspectiva de reunir histórias situadas no universo da classe média baixa, buscando dar protagonismo a personagens que em geral aparecem como coadjuvantes. A cobradora de ônibus, a senhora que almoça todos os dias no mesmo restaurante de comida a quilo, a costureira, o motorista de táxi… Tanto Ferrugem quanto Rua de Dentro trazem indivíduos de existências aparentemente ordinárias, mas a tentativa é de iluminar a potência de suas vidas, para além dos escaninhos limitadores aos quais os estamentos populares costumam ser relegados: o da violência e o da falta de recursos. No novo livro, trabalho mais fortemente o impacto que a experiência coletiva é capaz de provocar na esfera íntima. As ruas de dentro são aquelas que, a exemplo dos personagens do livro, não têm o glamour da vias principais. Mas são também as ruas que trazemos dentro de nós, como marcas do mundo.

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As miudezas do dia a dia normalmente passam despercebidas ao nosso olhar. Para criar seus personagens, você faz qual tipo de pesquisa?

Meu maior campo de pesquisa é a rua. Walter Benjamin dizia que o escritor deve andar na cidade como se estivesse em uma selva. Ele se referia à necessidade de apurarmos os sentidos. Na selva, se você não fica absolutamente atento, a tendência é que pereça. O espaço urbano, contudo, costuma provocar cegueira. Somos cegos de tanto vê-lo, como cantou o Caetano Veloso em O Estrangeiro. Quando a circulação pelas ruas se dá sob a premissa dessa atenção, conseguimos perceber o manancial de personagens, e ideias, e diálogos, que elas nos oferecem. É uma matéria bruta que serve de base, de inspiração, para o trabalho ficcional.

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Você acredita que os personagens de seus contos são mais representativos do Rio de Janeiro? Ou teriam um aspecto mais nacional?

Na época em que eu morava em Madureira, via o Méier, bairro vizinho e igualmente suburbano, como uma espécie de Ipanema. Um lugar mais chique, mais valorizado. A relação periferia/centro se fazia presente, mesmo que no âmbito de um microcosmo. Nas diferentes cidades e bairros do País, isso também acontece, não é algo exclusivo do Rio de Janeiro. Além disso, a exclusão familiar, a tentativa de normatização dos corpos e do desejo, a intolerância religiosa, os conflitos familiares, são temas que transcendem fronteiras estaduais. Assim como o próprio tipo de personagem que protagoniza o livro, oriundo da classe média baixa. O indivíduo que tem um emprego sem grande charme, trabalha para pagar as contas, toma sua cerveja depois do expediente. Que só quer ser feliz.

O conto é um gênero nem sempre bem compreendido – como explica sua atração por esse tipo de narrativa?

Mais que mal compreendido, o conto é um gênero maltratado dentro do universo literário brasileiro, das editoras às premiações. As exceções só confirmam a regra. Minha opção pelo conto se deve ao fato de que as histórias que imaginei até hoje pediam uma narrativa curta. E são elas que definem sua extensão. Não vou me forçar a escrever um romance porque o mercado assim o exige. Não escrevo ficção para agradar ao mercado. Em todos os livros, no entanto, procuro certa organicidade. Eles não são um mero ajuntamento de contos, há sempre alguma lógica para o recorte, seja temática, seja de ambiência.

Você acredita que a literatura está dando conta da realidade de hoje, que é tão complexa e acelerada?

A realidade anda tão inverossímil que a literatura está tomando de 7 x 1, como o Brasil contra a Alemanha. Mas acredito, sim, que diante da lógica dual e simplista em vigor, os livros de ficção e de poesia podem trazer uma bem-vinda complexidade no olhar para o mundo. Fora do dogma e da certeza.

A amargura e o tédio são os grandes males contemporâneos?

Difícil não estar minimamente amargurado no atual momento político-social. E, de certa forma, Rua de Dentro é também uma reação a esse momento, ao trazer histórias que tratam de relações homoafetivas, que se passam no espaço da favela, que mostram as cruéis consequências do machismo e da homofobia na vida das pessoas. São temas incômodos para parte da sociedade brasileira. Voltando à sua pergunta, talvez um dos grandes problemas contemporâneos seja o mal-estar que nasce do cotejo com a vida alheia. Vidas editadas, diga-se. O sujeito olha para a persona virtual do outro e se sente menor, menos antenado, menos divertido. Aquela alegria de tinta guache não resiste a um escrutínio mais detido, mas é suficiente para causar angústia.

Seus contos têm uma melancolia discreta?

Acho que sim. Talvez porque não acredite nessa alegria compulsória e sem meios-tons que tanto sucesso faz hoje. Como grande fã do gênero, lembro-me dos versos de Vinicius de Moraes e Baden Powell: “O samba é tristeza que balança”. Esse aparente paradoxo está muito próximo do que é a vida da gente. E, como busco uma literatura próxima da vida da gente, a melancolia faz parte dela.

RUA DE DENTRO
Autor: Marcelo Moutinho
Editora: Record (128 págs., R$ 39,90)
Lançamento Livraria da Travessa. Rua dos Pinheiros 513. 3ª (4/2), 19h

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.