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Livro de contos assustadores consagra autora russa Liudmila Petruchévskaia

A carreira literária da escritora russa Liudmila Petruchévskaia divide-se em antes e depois de 1986 – até esta data, sua gaveta ficou abarrotada de textos originais, censurados pelo governo da então União Soviética. Naquele ano, com a instauração da perestroika (a reconstrução e abertura política e econômica comandada por Mikhail Gorbachev), Liudmila passou a ser lentamente publicada e festejada, graças a uma prosa seca e direta, mas também incômoda e absorvente, o que a tornou para muitos uma herdeira de Edgar Allan Poe e Gogol.

Afinal, a sombria realidade na qual era obrigada a viver sob o regime comunista moldou sua escrita, cujas histórias geralmente contêm elementos místicos ou alegóricos e que são usados para iluminar as sombrias condições de vida soviética e pós-glasnot. É o que se observa em Era Uma Vez Uma Mulher Que Tentou Matar o Bebê da Vizinha, seleção de assustadoras histórias e contos de fada que a Companhia das Letras lança agora no Brasil, depois de consagrada nos Estados Unidos. Basta ler A Vingança, narrativa que inspira o título sobre uma amizade que se deteriora com o nascimento de uma menina.

O universo retratado por Liudmila reflete os horrores da vida doméstica de uma sociedade que aboliu a privacidade, obrigando famílias a viver em apartamentos subdivididos, espécie de minigulags, nos quais não existia intimidade. Mesmo assim, é possível encontrar um bom humor embutido entre as palavras de Liudmila que, aos 79 anos, vive com sofreguidão, não apenas escrevendo ficção e peças de teatro, como também trabalhando com desenhos animados e desenvolvendo uma carreira de cantora – há duas semanas, ela fez um pocket show em São Paulo. Foi nessa oportunidade que Liudmila respondeu às seguintes questões – ela escreveu em russo, material que foi devidamente traduzido para o Estado pelo jornalista Irineu Franco Perpétuo.

Na época em que a senhora escrevia histórias que iam para a gaveta, por causa da censura, como conseguia observar uma evolução em sua escrita? Ou seja, como conseguiu tirar proveito da falta de repercussão?

A coisa sempre veio de uma vez. Como se me ditassem de cima, da primeira à última palavra, muito breve, e eu anotasse em um caderninho (que sempre tinha comigo, assim como uma caneta, e, se não tivesse lápis, nem caneta, o conto desaparecia, e era uma tragédia, como uma perda séria). Eu datilografava na máquina de escrever, e levava à redação. Nos debates da redação, riam de forma totalmente aberta de mim, e também daqueles que apreciavam meus textos. Mas, que estranho: meus contos, e depois também minhas peças, foram cair nas mãos de alguém, e esses textos começaram a ser datilografados em massa – isso se chamava samizdat. Com o tempo, passei a ser uma célebre escritora proibida, clandestina.

Como a senhora, que não participa diretamente da política, consegue manter uma arte politizada? Como separar uma coisa da outra?

Meus contos não estavam impregnados de política nenhuma, dessa luta dos dissidentes pelos direitos humanos. Não escrevi nada contra o regime soviético, contra o gulag, não era nem uma negação das ideias do comunismo. Eu escrevia sobre as vidas das pessoas que se encontravam em situação-limite. Sobre a infelicidade no amor e o peso da existência, sobre alcoólatras e doentes, sobre velhos e crianças pobres.

Alguma vez a senhora mudou seu estilo de vida para ajudar seu trabalho como escritora?

Sim, escrevi principalmente à noite. Um marido, três filhos, depois uma mãe com paralisia. Tinha que alimentar todos, realizar as tarefas domésticas, lavar a louça, lavar a roupa, cuidar dos filhos, escrever contos para eles à noite (tenho mais de 300 contos). E meu primeiro romance se chama A Hora: Noite.

Suas histórias muitas vezes têm uma sensibilidade cômica e um subconsciente dark. É assim que a senhora vê o mundo?

O mundo era assim para a mulher soviética.

Quão importante é a perspectiva do narrador? Existe uma conexão entre perspectiva e verdade?

O leitor é quem decide se o autor escreve a verdade. Sempre consideraram que eu escrevo a verdade.

Obsessões habitualmente são influências – quais seriam as da senhora?

Deixei de beber, de fumar e de comer carne no meio da vida, e meus filhos, já crescidos, não bebem, não fumam e não comem carne. Depois, eu me proibi de jogar jogos de computador. Os filhos também. Meu mau hábito agora é não dormir à noite. Faço qualquer coisa – escrevo, leio, desenho, assisto a filmes ou concursos de canto.

Como define que um escrito será prosa, teatro ou letra de música?

Às vezes, entendo o que escrevi já ‘post factum’ (depois de terminado). Aos versos, de repente, chega a música, surge uma cançãozinha, e a peça, às vezes, se torna tão grande que você entende: isso é um romance, só que em diálogos. Seja novela ou conto, às vezes começam a encenar a história no teatro, como monólogo (recentemente, Fiódor Pávlov Andrêievitch encenou no teatro o conto Novas Aventuras de Ielena Prekrásnaia, e o conto místico O Sobretudo Preto foi encenado alternadamente em algumas estações de Moscou como espetáculo no estilo de rap).

Quais escritores que derrubaram barreiras que a senhora hoje admira?

Já, há muito tempo, só leio prosa documental e histórias de detetives. No passado, gostava dos clássicos russos dos séculos 19 e 20, do Bunin tardio; de Dostoievski, apenas O Idiota e, de Chekhov, apenas os quatro primeiros tomos. Gostava de À Sombra das Raparigas em Flor, de Proust, de José e Seus Irmãos, de Thomas Mann, de O Grande Gatsby, O Apanhador no Campo de Centeio, Bonequinha de Luxo e A Ponte de San Luis Rey, e também Cem Anos de Solidão.

Muitas de suas histórias são consideradas ‘fantásticas’, mas trazem um conteúdo muito realista. Acredita que chegará o dia em que as pessoas vão notar o verdadeiro terror, ou seja, a miséria implacável que transforma os seres humanos em monstros?

Os monstros se tornam doentes, ou naqueles que o poder corrompeu, ainda que em uma mesma pessoa.

ERA UMA VEZ UMA MULHER QUE TENTOU MATAR O BEBÊ DA VIZINHA

Autora: Liudmila Petruchévskaia

Tradução: Cecília Rosas

Editora: Companhia das Letras (208 págs., R$ 44,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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