A dúvida do técnico Carlos Alberto Parreira sobre a escolha dos goleiros que vão disputar a Copa da Alemanha não é novidade – única seleção a ter participado de todos os Mundiais, o Brasil já enfrentou dilemas atrozes sobre quais nomes deveriam representar a nação naquela que é a mais ingrata das posições no futebol. Afinal, ele está na contramão desse esporte. Enquanto os outros 10 jogadores da equipe avançam com o objetivo de marcar o gol, o goleiro, ao contrário, tal qual um gladiador acuado na arena, vê o fluxo da partida rumar constantemente contra si. Foi tal singularidade que despertou a atenção do jornalista Paulo Guilherme.
Enquanto pesquisadores se atropelam em busca de detalhes sobre a carreira dos goleadores, os matadores, os gênios da bola ele preferiu focar naquele sujeito que atua na faixa do campo onde, reza a lenda, a grama não cresce, o estraga-prazeres, o responsável pelo anticlímax do futebol.O resultado é um trabalho surpreendente – "Goleiros: Heróis e Anti-Heróis da Camisa 1" (Alameda Casa Editorial), que já está nas livrarias.
Foram quatro anos de pesquisa, iniciada, na verdade, para contar a história de apenas um goleiro: Cláudio Taffarel, um dos principais responsáveis pela conquista do tetracampeonato na Copa dos Estados Unidos, em 1994. Aos poucos, porém, Guilherme, jornalista tarimbado que cobriu não apenas aquele Mundial como também o da França/98 para o Grupo Estado, descobriu-se diante da ponta de um iceberg. A trajetória de Taffarel era apenas uma do manancial de ricas histórias que, relatadas aqui e ali, jamais figuraram juntas em um livro, traçando o perfil da mais shakespeariana das posições do futebol
A história começa, claro, na Inglaterra, berço do esporte em 1863, e já traz a primeira curiosidade: a figura do goleiro foi a última a ser criada, até mesmo depois do juiz, em 1871. Isso porque, no início, para diferenciar do rúgbi, os jogadores não podiam pegar a bola com a mão. Só mesmo quando se observou a necessidade de dificultar a marcação de gols é que se criou a função do goalkeeper, o goleiro, o único que podia se valer das regras do rúgbi.
"Desde então, o goleiro tornou-se o referencial para a evolução do futebol", escreve Guilherme, lembrando que a Fifa promove constantes mudanças na regra para aumentar as possibilidades de os atacantes fazerem gols e, com isso, garantirem um maior espetáculo para o público.
No início, era uma temeridade jogar como goleiro, pois as regras não o protegiam como atualmente. Era permitido, por exemplo, empurrá-lo ou impedir seus movimentos, o que tornava um escanteio uma temeridade tão grande como um pênalti. A solução era encontrar verdadeiras muralhas como Foulke, grandalhão de 1 90m e 141 kg que fechou a meta de diversos times ingleses na virada do século 19 para o 20.
A época também era de aprendizado para os brasileiros. Com a formação dos primeiros times e a realização dos primeiros campeonatos, o futebol se organizava no Brasil. Um nome logo se destacou, Marcos Carneiro de Mendonça, o primeiro goleiro da seleção nacional. "Enquanto os meninos de subúrbio começavam a desenvolver a malandragem, a ginga e a grande capacidade para improvisar que iriam consagrar a técnica do jogador brasileiro, Mendonça fazia do futebol uma ciência exata", observa Paulo Guilherme. "A arte de defender a baliza requeria, acima de tudo, horas e horas de estudos envolvendo física, matemática e geometria." Sim, para ele, bastava um goleiro com o mesmo corpanzil que o seu adiantar-se um pouco em relação à meta e abrir bem os braços que cobriria todos os ângulos do gol. Se hoje isso soa como condição básica, à época equivalia a descobrir a pólvora.
Marcos Carneiro de Mendonça iniciou a linhagem de valorosos nomes que se consagraram como goleiros, seja pelas glórias (e Gilmar dos Santos Neves desponta como um dos maiores, senão o maior), seja pelas histórias peculiares. Pesquisador meticuloso, Paulo Guilherme não apenas consultou todas as fontes possíveis como conversou com diversos ex-arqueiros.
Assim, conseguiu histórias maravilhosas, detalhes despercebidos até em fatos já amplamente divulgados. O goleiro Barbosa, por exemplo, responsabilizado pela derrota para o Uruguai em 1950, aquela que calou o Maracanã lotado e nos custou o que seria o primeiro título mundial, não terminou banido do futebol como muitos pensam. Ele continuou convocado para a seleção e só não foi à Copa da Suíça, em 1954, porque quebrou a perna.
Curiosidades não faltam ao trabalho de Paulo Guilherme. Você sabia que Félix jogou a Copa de 1970 com as mãos livres e resolveu usar as luvas justamente na decisão contra a Itália? E que Marcos passou o torneio de 2002 sonhando que levaria um frango igual ao da final do Mundial Interclubes de 1999? E qual rubro-negro fanático saberia dizer que Yashin, o Aranha Negra, já vestiu a camisa do Flamengo? E que personalidades como o Papa João Paulo II, Che Guevara e Julio Iglesias foram goleiros?
Como o futebol não é exatamente um jogo como tantos outros, mas uma rica armação dramática que reproduz os percalços e as alegrias da vida humana, o livro traz ainda pesarosos relatos humanos como a sucessão de tragédias que marcaram a vida e a carreira do goleiro holandês Jan Jongbloed: além de perder duas finais seguidas de Copa do Mundo (1974 e 1978), viu o filho também arqueiro, morrer em campo atingido por um raio.
Além de histórias, o livro oferece uma inédita compilação de dados estatísticos, como a lista de todos os 92 goleiros que vestiram a camisa da seleção brasileira, desde 21 de julho de 1914, quando a equipe entrou em campo pela primeira vez para enfrentar o Exeter City, da Inglaterra, até 1º de janeiro deste ano. Completam o material um caderno com fotos e uma série de ilustrações feitas por Baptistão, um dos mais belos traços estampados rotineiramente nas páginas do jornal "O Estado de S.Paulo".