A literatura é, hoje, a única forma realmente genuína de que a humanidade dispõe para falar do homem e da sociedade de uma maneira integrada e viva, sem a fragmentação das análises científicas, sem a ambição dos textos filosóficos, sem as limitações das arengas religiosas e sem as imposições dos discursos políticos. Na literatura nos deparamos com a surpreendente complexidade humana tratada de forma despretensiosa e quase sempre contextualizada e encontramos também a liberdade necessária para apreciar sem medo todas as facetas do comportamento humano. Nem mesmo os meios audiovisuais podem lhe fazer frente, porque a televisão ou o cinema, embora nos divirtam, na maioria das vezes nos transformam em simples expectadores, passivos e resignados, privando-nos do crescimento intelectual a que uma boa leitura inevitavelmente nos conduz.

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Quando lemos literatura, ou seja, quando aprendemos a fruir despreocupadamente de um livro sem buscar nele nenhuma utilidade imediata, procurando apenas manter uma concentração tenaz na busca do significado das palavras, na construção dos sentidos, na recriação dos universos imaginários e na percepção sutil das mensagens, vamos pouco a pouco ampliando não apenas o nosso repertório lingüístico, mas também a nossa capacidade de pensar, de sentir e de manifestar emoções. Quando nos deixamos gentilmente guiar por uma consciência diferente da nossa em direção a esse mundo de sonhos e alucinações, horrores e perigos, dramas e alegrias, chamado literatura (esse mundo possível de mentiras perfeitas onde as leis são menos rígidas que as do mundo real), aprendemos a vivenciar experiências desconhecidas, a dialogar com homens e mulheres de outros lugares, épocas e culturas e, a perceber que, afinal, pertencemos todos a uma mesma família humana, que compartilhamos todos uma só mesa.

No entanto, ao ler literatura fatalmente acabamos comparando essas duas realidades: o mundo ao qual estamos sujeitos e o mundo literário (onde podemos ser pessoas diferentes, explorar espaços inacessíveis, viver mais felizes, sentir-nos mais lúcidos, mais amados e mais amantes). Ao fazermos isso, naturalmente vamos nos dando conta de que o mundo real está muito malfeito, muito mal-acabado, começamos a vislumbrar nossas amarras, nossas limitações, e terminamos nos certificando de que aquilo que chamam de normalidade no final das contas é apenas a mediocridade, como disse Carlos Fuentes. E a mediocridade normalmente nos impede de fruir e de apreciar o belo, a mediocridade nos força a condenar ou a rejeitar de antemão todas as coisas que não compreendemos. Por isso, a literatura é também o discreto refúgio dos insatisfeitos e dos descontentes, pois nela encontramos os gritos de protesto contra as misérias da vida, o complemento indispensável para as nossas incompletudes, o alimento para a nossa cotidiana fome de insatisfação. Porque ao ler literatura experimentamos um antídoto contra a infelicidade e, ao mesmo tempo, somos inoculados com um potente estimulador da rebelião e do inconformismo.

E se ler é reconhecer, como Fernando Pessoa, que a vida não basta, se ler é cometer um ato de insubordinação contra um viver insuficiente, então, vale a pena lembrar que todo progresso humano quase sempre nasce a partir da insubmissão e da rebeldia e que, portanto, ler é também buscar mecanismos de transformação e de superação, ler é desconfiar dos que apregoam uma visão conformista da vida, ler é refinar a nossa sensibilidade crítica, é realizar um contínuo exercício de inquietação mental para evitar que o nosso intelecto se entregue ao marasmo e à preguiça.

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Delson Biondo é professor