Leminski, ou o sucesso da estima

d51150407.jpgO curitibano Paulo Leminski (1944-1989), bandido que sabia latim, retratado na esplêndida biografia escrita pelo jornalista Toninho Vaz, foi sem dúvida um dos maiores poetas de sua geração, senão o maior, curtido por uma legião de leitores jovens, especialmente os que se convencionava engastar no circuito universitário, sem falar da contracultura ou do descolado underground, com seu esfuziante cortejo de bichos-grilos.

Leminski, ao que me consta, não foi traduzido e nem seus livros venderam aos milhares, aliás, como escreveu em 1989 o poeta Haroldo de Campos sobre o relançamento de Catatau, obra limite desse artista e, por estranho acaso, seu romance de estréia. Haroldo dizia que o livro teve êxito de câmera, mas se valeu da genial definição do ?sucesso de estima? junto a um pequeno grupo de aficionados. Uma coisa é certa: dificilmente qualquer dos livros de Leminski estará disponível em livrarias ou sebos, quer pelo tempo de sua edição, ou, ainda, pelo agravante das reduzidas tiragens, mesmo que o poeta tenha publicado pela Brasiliense, pioneira em cobrir a lacuna dos ícones adorados pela juventude.

Daí o verdadeiro baile nas coirmãs, com a cascata de livros de Jack Kerouac, William Burroughs, Christopher Isherwood, John Fante (traduzido por Leminski) e Charles Bukowski, além do rompimento do ineditismo dos nativos, com a sacada bem-sucedida de publicar os escritos do próprio Leminski, Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva, entre tantos outros.

O problema é que no Brasil há um esquecimento deliberado das coisas boas, de sorte que alguns dos nossos criadores mais insignes são cativos duma espécie de limbo literário. Refiro-me a Dyonélio Machado, Lúcio Cardoso, Osman Lins e Hermilo Borba Filho, para citar uns poucos, que, apesar de terem produzido obra digna da importância atribuída a Faulkner, Fitzgerald ou Hemingway, ou a escritores do mesmo naipe em qualquer país culto, são ilustres desconhecidos das novas gerações.

É imperioso enaltecer o feito da Editora Sulina, de Porto Alegre, que em 1989 lançava simultaneamente a reedição de Catatau, que o poeta Antonio Risério comparou ao que há de melhor na produção literária do continente (a primeira edição, custeada pelo autor, é de 1975), e a reunião em volume único Vida – de quatro biografias (Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trotski), anteriormente publicadas pela mesma Brasiliense. Esse projeto foi acalentado por Leminski, que não chegou a vê-lo, pois o livro só apareceu depois do desfecho da ?cirrose prometéica que o roubou de nosso convívio?, para invocar o testemunho cortante de Haroldo de Campos.

A triste realidade que nos leva a desprezar grandes literatos está sofrendo, nesse momento, um vigoroso tranco da Bernúncia, pequena editora de sonhos altos e coragem exemplar atuante em Florianópolis, que buscou o apoio do Complexo de Educação Superior de Santa Catarina (Cesusc) para lançar Paulo Leminski: do carvão da vida o diamante do signo, ensaio-excurso de autoria de Jayro Schmidt, desde já leitura obrigatória a todos quantos têm o discernimento de mirar a gema misturada ao cascalho. Escritor e artista plástico com acústica em restritos círculos de inteligência de sua terra, vocacionado à sublimação das palavras, ao ensejo desse novo livro Jayro se credencia, com certeza, a vôos mais ousados, não só pelo valor da contribuição que aporta aos apreciadores do poeta, mas pela propriedade do percurso resultante da ?leitura e releitura da prosa leminskiana?, na qual procurou ?como se fosse palavra silenciosa ou adormecida, captar seus processos poéticos, que, em seus termos e ao se referir ao haicai, é roubar a alma do instante?.

Escrutinando a prosa para compreender a poesia, Jayro se mantém fiel àquela que é uma das sínteses leminskianas mais perfeitas (a linguagem a serviço da vida e não o contrário), enfatizando que ?as cartas de Leminski, em um período histórico infeliz, compõem uma voz feliz, que não é somente a sua voz. Inquieto e crítico, sua palavra é o testemunho de um signo coletivo de resistência?. Nem seria necessário acrescentar, mas como o esquecimento é doloroso o ensaísta o faz: ?Recorde-se que é a ditadura o cenário predominante no período que Leminski escreve as cartas e, também, que o papel contracultural é de resistência e, sobretudo, de ação intelectual transgressiva.?

As quatro biografias assinalam a identidade do autor com homens que revolucionaram a poesia e a vida. Nesse sentido, é seminal a apreciação de Alice Ruiz: ?Não foi por acaso que o autor escolheu esses quatro nomes para biografar. Mas foi provavelmente o acaso, também conhecido como destino, que colocou esses quatro exemplos de radicalidade na vida do poeta. São eles que nos clareiam a visão da trajetória de Paulo Leminski. Ou, pelo menos, da trajetória de seu sonho de vida.? Jayro, por sua vez, identificou ?exercícios de aprendizado e devoção que fazem a personalidade de Leminski incorporar o outro, como é o caso exacerbado de Cruz e Sousa. No final desta biografia, sempre com a sua maneira direta, telegráfica, ele sintetiza essa propensão anímica e necessária em função de suas origens étnicas: ?Eu sou Cruz e Sousa?.

O capítulo final é dedicado a Catatau, obra limite classificada por Haroldo de Campos como o ?sarapatel leminskiano?, ao citar o estalo do autor em algum momento dos anos 60s, durante aula sobre invasões holandesas. Assim: Descartes, na pessoa de Cartésio, segue Maurício de Nassau em sua vinda a Recife, onde forma um trio integrado por Articzewski e Occam, seguindo-se a apoplética trama em que ?não há explicações, somente complicações?, com reflexos de Joyce, Guimarães Rosa e Mário de Andrade, sem quebra da autenticidade dos desvarios do autor. Aliás, o próprio advertiu os aventureiros das duzentas e tantas páginas eivadas de espelhos intercambiantes: ?Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se.? O livro de Jayro é bússola e clareira.

Ivan Schmidt é jornalista

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