Envolvido em uma poderosa articulação de marketing, a nova obra literária do cantor e compositor Chico Buarque, Leite derramado – que teve 70 mil exemplares impressos para a primeira edição -, chegou às livrarias, disponível em dois formatos de capa e possui até mesmo um site, em que o escritor faz a leitura de um excerto do texto.

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O esquema arquitetado não é à toa. Ao lado de Cristovão Tezza, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho e João Gilberto Noll, Chico Buarque vem sendo apontado como um dos futuros cânones da literatura brasileira.

Seu último livro, Budapeste (2003), vendeu 275 mil exemplares, garantiu um Prêmio Jabuti ao autor e, em maio, deve finalmente estrear no cinema nacional, com o elenco formado pelos atores Leonardo Medeiros e Giovanna Antonelli.

A história de Leite derramado é narrada em primeira pessoa, por Eulálio Montenegro D’Assumpção, uma personagem de cem anos que, à beira da morte, revela os fatos de sua vida para enfermeiras, o médico e sua filha – figuras que, aliás, podem ser o resultado dos devaneios do próprio narrador -, em um hospital.

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Por meio de fluxos de consciência e da memória fragmentada de Eulálio, filho de senador, pertencente a uma abastada e tradicional família, Chico Buarque aborda a decadência da elite da época e dos Assumpção.

No cerne do livro, há o envolvimento amoroso entre Eulálio e Matilde, que a exemplo de Dom Casmurro, de Machado de Assis, também levanta dúvidas sobre a infidelidade da personagem feminina com o melhor amigo do narrador.

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Em Leite derramado, o francês Dubosc passa a omitir certas informações ao amigo Eulálio, como por exemplo, a quantidade de vezes que frequentou a sua casa, localizada próximo ao mar, em horários em que apenas Matilde estaria na residência para recebê-lo:

“Eu olhava a areia nas juntas do assoalho, e quando lhe perguntei por Dubosc, Matilde confirmou que ele trocara de roupa em casa, mas mal o havia visto”, provoca o narrador, deixando o leitor interpretar se houve ou não a traição.

As comparações com Machado de Assis não terminam na possível relação extraconjugal das personagens. Repleto de preconceitos, Eulálio se manifesta de forma ácida contra nordestinos, negros e pobres, durante toda a obra, aproximando-se das irascíveis personagens machadianas. Chico Buarque ainda consegue estabelecer, por meio da narração, diálogos com o leitor da mesma forma com que Machado fazia.

Os pecados de Chico Buarque, em Leite derramado, estão concentrados na necessidade do escritor em retomar diversos clichês. Mas ele até consegue realizar alguns momentos poéticos, como na passagem em que discorre sobre o ciúme, que chega a ser definido como “a espécie mais introvertida das invejas”.

Seguindo as características de Estorvo (1991) e Benjamin (1995), o literato novamente escreve em primeira pessoa, resgatando lembranças e utilizando constantes alterações nos tempos verbais, que acrescentam suaves toques de vertigem à narrativa.

Quem esperava algo melhor do que Budapeste, pode vir a se decepcionar, pois nem a história, nem a prosa poética são tão boas e originais dessa vez. No entanto, a nova obra de Chico Buarque está longe de ser um livro ruim.

Serviço

Leite derramado
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 36,00 (195 págs.)