Com o seu livro Réflexionssous sentences et maximes morales, cuja primeira edição, recebida com entusiasmo, é de 1664, o aristocrata Francisco VI, príncipe de Marcillac e duque de La Rochefoucauld (1613-1680), tornou-se um dos mestres universais do aforismo. Talvez o primus inter pares.
Um dos seus ancestrais mais ilustres, em termos de arquitetura pensante, é certamente Hipócrates, o extraordinário médico grego, que, manejando também a pena com maestria, nos deixou um livro clássico, Aphorismós.
La Rochefoucauld é essencialmente um moralista que, às vezes, nos dá a impressão de ser amoralista ( mas nunca imoralista ) e pode ser considerado tributário também de Marco Aurélio, Sêneca, Terêncio e, sobretudo, do imenso Montaigne. Isso para não falar da Bíblia (Provérbios, Eclesiastes e Livro da Sabedoria).
Pessimista crônico, sacrificando sempre no altar do cinismo e do cepticismo, descrente do gênero humano e da humana condição, o aforista parece não admitir sequer a existência daquele milk of human kindness (leite da bondade humana) de que falou o excelso Shakespeare.
Considerado como uma espécie de testamento epigramático, a obra de La Rochefoucauld é a de alguém que que via os homens e o mundo com invencível amargura, com irremediável desencanto, e considerava o amor-próprio, a hipocrisia e o egoísmo como atributos inalienáveis do ser humano. Entretanto, a sua visão crítica não se voltava apenas para os outros, mas também para si mesmo, autocriticamente. De fato, ele soube penetrar, à maneira de Montaigne, nos mais profundos estratos do próprio espírito, sondando-se e dissecando-se, numa espécie de auto-análise que pode ter tido nele um dos precursores. Era, acima de tudo, un honnêt homme. Um homem de bem, que desconfiava de gestos nobres e atos heróicos, mas que era capaz de exercitá-los, se necessário.
Como escreve Otto Maria Carpeaux, com a sua costumeira argúcia, a infelicidade existencial do grande moralista foi agravada por um motivo bem simples: ele estava sempre certo, tinha sempre razão.
E fico por aqui, para não retardar o prazer que o leitor por certo sentirá ao ler os aforismos, epigramas e máximas que selecionei da obra maiúscula do francês. Aí vão eles. Saboreiem.
Freqüentemente nos envergonharíamos das nossas ações mais belas, se o mundo visse os motivos que as produzem.
*** Amamos sempre os que nos admiram, mas nem sempre os que nós admiramos.*** Temos sempre muita força para suportar os males dos outros.*** Os velhos gostam de dar bons conselhos para se consolarem de já não poderem dar maus exemplos.*** As brigas não durariam tanto se só uma das partes não tivesse razão.*** É mais vergonhoso desconfiar dos amigos do que ser enganado por eles.*** É tão fácil enganar-se a si mesmo, sem o perceber, como é difícil enganar os outros, sem que o percebam.*** A filosofia triunfa facilmente dos males passados e futuros, mas os males presentes triunfam sempre dela.*** A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.*** O interesse fala todas as línguas e representa todos os personagens, mesmo o do desinteressado.*** Grandes espíritos fazem-se entender com poucas palavras; os pequenos, pelo contrário, têm o dom de muito falar e nada dizer.*** A lisonja é uma moeda falsa que só tem curso por causa da nossa vaidade.*** O orgulho não quer dever e o amorpróprio não quer pagar.***O sotaque da região em que nascemos permanece no coração e no espírito, e não apenas na fala.***Prometemos segundo as nossas esperanças e cumprimos de acordo com os nossos medos.***Os vícios entram na composição das virtudes, como os venenos na composição dos remédios.*** A virtude muitas vezes não iria tão longe sem a companhia da vaidade.***Um homem decente pode apaixonar-se como um louco, mas não como um tolo.
Concordando-se ou não com todos os aforismos, máximas e epigramas que ficaram para trás, uma coisa é certa: eles são pensamentos fulgurantes de um espírito penetrante e sutil, de uma inteligência aguda e cáustica, superiormente pensados e rigorosamente escritos. Valem, não apenas como moralités pedagógicas, mas também como documentos e paradigmas estilísticos, mercê da concisão lapidar, do ostinato rigore e do fulgor estético que os distingue. Talvez por isso, há quase três séculos e meio eles encantam o mundo.
João Manuel Simões
é autor de cerca de 40 livros (de poesia, crítica, ensaios, contos, crônicas e pensamentos).