Kampo: saber indígena em alta entre os não-índios

d41.jpgSe, no passado, o kampo (mais conhecido como kambô entre os não-índios) era utilizado estritamente pelas sociedades indígenas da família lingüística pano, como os katukinas no Acre, nos últimos cinco anos saiu da placidez dos igapós da região e alcançou as páginas dos jornais regionais, nacionais e as emissoras de TV. Tornou-se capítulo de livro, estudo interdisciplinar médico, e chegou aos consultórios de terapias alternativas e, como tema de discussão, aos ambientes acadêmicos.

O que é o kampo. ?É o nome do anfíbio Phyllomedusa bicolor e outras espécies do gênero Phyllomedusa da qual é utilizada a secreção, principalmente como estimulante cinegético capaz de aguçar os sentidos do caçador e de livrá-lo da desconfortável condição de panema (yupa), uma pessoa azarada na caça?, explicou Edilene Coffaci de Lima, doutora em Antropologia e professora na UFPR, que esteve entre os katukinas por 18 meses, distribuídos na década de 1990. Voltou no início de 2005 já no auge da efervescência do kampo entre os brancos.

Coleta. Edilene atesta que, através do ?som do seu canto, o kampo é localizado, carregado no galho em que se apóia e amarrado em cada uma das patas em dois pedaços de pau posicionados na vertical e paralelamente alinhados. É cuspido para que se irrite e comece a expelir a secreção; sua pele é raspada com espátula de madeira, sem machucá-lo, pois, se isso ocorrer, cobras poderão picar aquele que o feriu, pois o kampo lhes oferece a matéria-prima? do veneno.?

Aplicação. A pesquisadora testemunha que ?fazem a aplicação nas primeiras horas da manhã, depois de jejuar por toda noite e de beber grande quantidade de caiçuma (bebida de mandioca) ou água. Queima-se superficialmente a pele com pedaço de cipó titica. Em seguida, é depositada na queimadura chamada ?ponto? a secreção do kampo, diluída em água ou saliva para desfazer a cristalização. Como efeito, dependendo da quantidade de ?pontos?, ocorrem inchaço e vômitos. As mulheres aplicam de dois a cinco pontos na panturrilha para eliminar indisposições diversas, conceituadas como preguiça?. O kampo deve ser aplicado por uma segunda pessoa, por alguém que tenha as qualidades que se quer alcançar.

A pesquisadora assistiu a utilização do kampo em campo: ?Cheguei a ver mais de noventa aplicações no peito e nos braços de um homem…?. Explica que, ?atualmente, as aplicações persistem, mas em menor número, agora mais condizentes com suas atuais condições ecológicas: o início da pavimentação da BR-364 aumentou o número de pessoas estranhas dentro da terra indígena, afugentou os animais da caça e comprometeu sua dieta alimentar. Nos dias atuais, além de um estimulante cinegético, o kampo se converteu também em um sinal diacrítico, um tipo de marcador vistoso da identidade do grupo?.

Kampo hoje. Desde 2004 o kampo vem sendo divulgado em grandes centros urbanos, como São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. Em São Paulo e Belo Horizonte, em abril deste ano, palestras sobre o uso do kampo foram feitas, em clínicas de terapias alternativas, por índios e não-índios. Em seguida, eram feitas aplicações nos interessados. Em Brasília, aplicações de kampo têm sido feitas pelo filho de um seringueiro que, na década de 1960, aprendeu com os índios a usar o kampo. Pessoas de outras cidades mostram-se interessadas em experimentar a secreção do sapo-verde.

Embora o kampo esteja em alta em algumas clínicas de terapias alternativas, seu uso como ?remédio? é controverso, pois até o momento não existe qualquer estudo médico que indique quais doenças ele efetivamente pode tratar nem quais são os efeitos que promove no organismo de quem recebe a aplicação.

De acordo com a pesquisadora, em 2003, ?depois de expressiva veiculação, nacional e regional, de notícias sobre o kampo, os katukinas encaminharam à ministra Marina Silva carta que solicitava ao Ministério do Meio Ambiente a coordenação de estudo sobre o sapo-verde. A proposta foi acolhida e, no momento, está em curso a elaboração do projeto de pesquisa que envolve antropólogos, biólogos moleculares, médicos, herpetólogos, entre outros. A expectativa de índios e pesquisadores é que tais estudos possam contribuir para regulamentar o uso do kampo por não-índios e, ao mesmo tempo, assegurar benefícios econômicos para seus usuários tradicionais: as populações indígenas do sudoeste da Amazônia, entre as quais os próprios katukinas, os yawanawas e os kaxinawás.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. zeliabonamigo@uol.com.br

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