Há um momento muito interessante – e revelador – no longa de Safy Nebbou que estreia nesta quinta, 12, nos cinemas brasileiros. O filme chama-se Quem Você Pensa Que Sou e, nele, Juliette Binoche faz mulher que, meio de pirraça contra o ex-companheiro, cria um perfil falso nas redes sociais. Seu avatar é uma mulher muito mais jovem e um amigo do marido é a isca. Ele fica atraído por Claire – seu nome -, marcam um encontro. O rapaz procura em vão a mulher da foto, e o diretor filma a cena do ângulo de Claire/Juliette, que se posta diante do cara e, obviamente, ele não lhe dá atenção, pois busca uma outra pessoa.
Por que uma mulher madura se presta a esse jogo? “Eu não”, Juliette ri gostosamente, mas diz que consegue entender a personagem. Como atriz, é sempre seu desafio. Defender a personagem, vivenciar seus dramas e emoções, sem julgamento. Em Berlim, em fevereiro, Juliette conversou com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo sobre o filme de Nebbou.
Embora não seja um estreante, Safy ainda é um realizador meio desconhecido, com mais curtas do que longas. Você tem filmado com grandes diretores, por que arriscar?
Justamente pelo risco, como você diz. As coisas nunca são simples de definir. Sim, tive o privilégio de filmar com Kieslowski, Kiarostami, Naomi Kawase, Bruno Dumont e outros autores que já imprimiram sua marca no cinema. Alguns já morreram, mas um convite desses grandes é sempre tentador. Existe também o roteiro, o tema, a sua pré-disposição a abordar certos universos. Não sou dependente das redes sociais, mas conheço muita gente que é. Tenho meu twitter, Instagram, Face, mas são ferramentas de comunicação e trabalho. Ocorre que, para muitas pessoas, viraram a própria vida, justamente porque você pode fazer como Claire, que cria um avatar muito mais jovem e começa a brincar de sedução. Como eu, ela é uma mulher de 50 anos, fazendo-se passar pela metade de sua idade. Publica a foto de uma jovem bonita. É uma irresponsabilidade, é fake, mas os sentimentos que o filme aborda, amor, o medo do tempo, a solidão, tudo isso é real. Fiquei tentada a embarcar nessa viagem.
Você, Juliette, criaria um perfil falso?
Na verdade, até criei, como pesquisa, mas foi algo muito breve e não me senti nada bem. Atores, e principalmente atrizes, são muito suscetíveis à beleza, à idade, mas não conseguiria expressar minhas emoções através de uma máscara. Quer dizer. É um paradoxo, porque, como atriz, é o que faço normalmente, mas de forma inversa. Empresto meu rosto, meu corpo, meus sentimentos para expressar as vidas e os sentimentos dos outros. Isso pode ser libertador, sabe, mas também pode mexer muito com os seus sentimentos. Felizmente, nunca tive muitos problemas para entrar e sair dos personagens. E olhe que tive algumas experiências bem radicais. Quando filmamos Camille Claudel 2015, Bruno (Dumont) me propôs contracenar com internas de verdade numa instituição psiquiátrica. Cada dia era uma aventura e tive alguns momentos bem dilacerantes, mas quando Bruno me chamou para outro filme, depois, lá estava eu, decidida a mudar o tom e fazer comédia com ele.
Claire?
O que mais me intrigou nela foi uma coisa que não vamos poder abordar, sob risco de criar spoiler, mas à medida que eu lia o roteiro me perguntava como aquilo ia terminar. O desfecho me pegou desprevenida, e tive de voltar atrás para absorver o impacto do twist. Achei muito ousado da parte de Safy.
Você sabe, não preciso lhe dizer que é uma das mulheres mais belas do mundo…
Não sei não, você é que está dizendo (risos).
Pois bem, então estou dizendo, mas a minha pergunta é – como atriz, como você lida com o passar do tempo?
Com o envelhecimento? Vamos dar nome. Como atriz, estou tendo o privilégio de interpretar papéis correspondentes a cada fase da minha vida. Já fui muito jovem na tela, espero ficar velhinha, e com bons papéis, por que não?
Catherine Deneuve está neste festival (a Berlinale de 2019) com um de nossos autores preferidos – André Techiné – e fazendo uma avó em Adeus à Noite. Eu ainda chego lá, mas por enquanto estou vivendo meus 54 anos (fez 55 em março).
Você tem tido sucesso trabalhando com autores que tentam colocar na tela o invisível e o indizível. Como é entrar nesses universos tão secretos, tão íntimos?
É sempre uma questão de reciprocidade, e confiança. Nenhum diretor me pediu nunca algo que achasse que eu não poderia dar. O que é preciso, sempre, é achar um tom. Saber das intenções, conscientizar-me delas. Já trabalhei com diretores que não gostam muito de repetir os planos e outros que repetem à exaustão. Eu gosto de tentar chegar ao ponto, de cara, mas não tenho problemas em repetir. O importante é se esquecer de quem você é e entrar na filmagem como se fosse um jogo. Esse trabalho pode ser extenuante, mas também é divertido. Depende de a gente fazer de cada filme uma experiência enriquecedora, não só para nós, que fazemos, mas para o público também.
Você é uma estrela internacional, a mais bem paga atriz do cinema francês…
… Quem lhe contou isso?
Não é segredo nenhum, basta entrar no Google e fazer uma pesquisa com seu nome. Mas a verdade é que, apesar do renome, você é muito reservada. Tem um casal de filhos, Raphael e Hanna, mas quase não se sabe nada de sua vida privada. Não estou querendo ser indiscreto, mas como é Juliette Binoche na intimidade?
Sou filha de artistas. Meu pai, um escultor, minha mãe, roteirista e atriz. A arte sempre fez parte da minha vida, mesmo quando se separaram muito cedo e minha irmã e eu fomos para o internato. Sou naturalmente reservada, você não vai conseguir nenhuma indiscrição de minha parte. Entendo a curiosidade das pessoas, mas o fato de ter uma vida pública não vai me impedir de manter a privacidade. Mas vou lhe dizer – entre um filme e outro gosto de me recolher. Essa rotina de festivais, de tapetes vermelhos pode ser extenuante. Já tem exposição que chegue. Não vejo problema nenhum em ficar comigo, com meus filhos, meu marido, um bom livro, uma boa taça de vinho. Alguns dos maiores prazeres da vida estão em coisas muito simples.
Você talvez seja a atriz mais premiada de sua geração. Ganhou o Oscar (de atriz coadjuvante, por O Paciente Inglês), o César, o Oscar francês (por A Liberdade É Azul) e o prêmio de melhor atriz em Cannes (por Cópia Fiel). O que ainda lhe falta?
Certamente não são os prêmios, mas por mais lisonjeiros que sejam seria absurdo encarar essa função de olho nos prêmios. Você citou três filmes de diretores que já morreram – Anthony Minghella, Krzysztof Kieslowski e Abbas Kiarostami. De alguma forma sinto falta deles, porque cada um deles me abriu os olhos para a vida e a minha atividade como atriz. Kieslowski amava a contenção, o silêncio. Construía uma tensão na imobilidade do corpo da gente. Mas também conseguia descontrair um set com uma risada inesperada. São momentos que guardo pela vida.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.