A atriz francesa Jeanne Moreau, certa vez, explicou ao repórter que será sempre mademoiselle, não importa que tenha 100 anos. Mademoiselle Juliette Binoche, de 55 anos, contracena pela primeira vez no novo filme com mademoiselle Catherine Deneuve, de 76. Já pensaram? Duas grandes estrelas – as maiores da França? Mademoiselle Binoche estará em Macao, no começo de dezembro, para participar do festival – como embaixatriz da cultura – e para prestigiar a estreia mundial do novo Hirokazu Kore-eda. O autor japonês, que venceu a Palma de Ouro no ano passado com Assunto de Família, assina seu primeiro filme em língua inglesa. Chama-se The Truth. E a verdade é que Juliette adorou trabalhar com Kore-eda. “Ele é muito reservado, quase não fala, mas escreve muito. Nisso se assemelha a Bruno Dumont, cujos roteiros parecem romances. Kore-eda envia mensagens muito longas e detalhadas. Como ‘não’ não faz parte da cultura japonesa, ele nunca diz o que não quer, mas é tão envolvente que nos leva a fazer exatamente o que quer da gente.”
Ela conversa com Estado pelo telefone, de Los Angeles. Essa mulher é um globetrotter. Vive viajando e o motivo da entrevista é que, entre os EUA e a China, no fim de semana que vem, dias 29 e 30, Juliette estará no Brasil, mais exatamente no Rio, ou melhor, em Niterói. Juliette será a madrinha das comemorações dos 30 anos da Imovision. Será sua primeira visita ao Brasil, e ela admite estar ansiosa. “É um país continental, com… Quantos mesmo? 250 milhões de habitantes? É muita gente, e ainda tem a Amazônia, como pulmão do mundo. Mas tenho de confessar que meu interesse pelo Brasil é muito mais pessoal. Lá atrás, nos 1800, um tataravô meu casou-se com uma brasileira, portanto, tenho sangue brasileiro. Isso foi há quase 200 anos, mas tenho muita curiosidade de saber se ainda existe algum Binoche no Brasil.”
Embaixatriz na China (Macao), madrinha no Brasil. Jean-Thomas Bernardini, da Imovision, sempre quis trazer Juliette ao País. A cada filme com ela que distribuía, renovava o convite. Finalmente, depois de muitas tentativas, conseguiu. Ela virá. Aproveitando sua presença no País, Jean-Thomas – a Imovision – vai relançar nos cinemas a versão restaurada de A Liberdade É Azul. O filme é o primeiro volume da trilogia das cores de Krzysztof Kieslowski: Bleu, Blanc, Rouge. A Liberdade É Azul, A Igualdade É Branca, A Fraternidade É Vermelha. Toda a trilogia virou cult para cinéfilos que veneram o grande diretor polonês. Kieslowski era um intimista radical. Sempre quis colocar na tela o invisível. Que lembrança Juliette guarda daquela filmagem, no começo dos anos 1990? “Considerando-se a gravidade do tema, o que me vem sempre que penso em Krzysztof, e naquele filme, em especial, é que foi um dos períodos mais leves da minha vida. Foi um set muito alegre, todo mundo muito feliz, divertindo-se. Krzysztof ensaiava muito, mas, até porque o orçamento era reduzido, filmava pouco. Por ele, tudo se resolveria na primeira tomada. Eu, muitas vezes, me sentia insegura e queria repetir. Dizia-lhe que a produção era francesa (de Marin Karmitz) e que, para a gente, era muito comum repetir as cenas. Ele não queria saber. Dizia que, com empenho, se fizéssemos como havíamos ensaiado, uma tomada seria suficiente.”
O invisível? “Não me pergunte como ele conseguia torná-lo visível. Parecia uma filmagem normal, mas algo, realmente, passou-se na tela quando vi o filme pela primeira vez, e sempre que o revejo. Há um mistério Kieslowski, mas não serei eu a explicar.” Mademoiselle Binoche parece muito exigente na escolha de seus papéis e diretores, mas também é escolhida por eles. A lista é impressionante.
André Téchiné, Anthony Minghella, Kieslowski, Leos Carax, Bruno Dumont, Abbas Kiarostami, Naomi Kawase, agora Kore-eda. Deve haver alguma explicação para isso, e ela própria arrisca. “É um pouco de sorte, talvez, mas também pode ser que tenha a ver com as particularidades da minha biografia. Minha irmã e eu fomos criadas em internatos. Meus pais eram atores de teatro, viviam em turnês, não tinham muito tempo para a gente. Isso marca. Sempre necessitei de atenção, de carinho. Quando minha mãe nos resgatou e passamos a viver em família, algo já se havia rompido. Sempre fui solitária, introvertida. Passei a gostar de representar, de ter outras vidas. Os autores sentem isso. Gosto de trabalhar com artistas que conseguem ver através de mim, que não se contentam com uma imagem superficial e me confrontam comigo mesma.”
Além de representar, ela canta, faz poesia. É múltipla? “Todo mundo é, a questão é que muitas vezes as pessoas não têm noção e não desenvolvem suas habilidades, seus talentos. Não sou louca de me comparar a Rimbaud, mas a poesia é a quintessência da experiência íntima das pessoas. Poderíamos discutir forma, fundo. O que chega antes, o que é mais importante. Às vezes, andam juntos, e é o que faz o mistério da poesia. A gente discute muito o gênio, e tive oportunidade de conhecer e trabalhar com alguns. Mas o gênio não pertence à pessoa. Passa através dela e o artista não é outra coisa senão um catalisador. Sua virtude é a capacidade de perceber isso. É uma forma de entrar em contato com o invisível, com algo que não nos pertence, mas que buscamos e, às vezes, podemos alcançar, como Kieslowski.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.