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John Irving trata das limitações humanas em ‘Avenida dos Mistérios’

Em 40 anos de carreira literária, o escritor americano John Irving escreveu romances com personagens excêntricos que expõem seu olhar delicado para temas que se tornaram obsessivos: infância, orfandade, sexo, religião, realismo fantástico e, claro, a arte da escrita. Sua mais recente obra, Avenida dos Mistérios (Rocco), a 17ª, oferece um bem dosado coquetel dessas inquietações.

A trama acompanha a trajetória de Juan Diego Guerrero, escritor mexicano-americano que, além de ter uma deficiência em um dos pés, é obrigado a tomar remédios para combater um problema congênito no coração, algo que o impede de sentir prazer ou fortes emoções. Se o físico é limitado, a imaginação de Guerrero é ilimitada, o que o torna um autor renomado. Ao viajar para as Filipinas, ele conhece duas mulheres, mãe e filha, fãs de sua obra, que o cortejam a ponto de ele vacilar: vale correr o risco de morrer ao não se medicar para ter, finalmente, um prazer no sexo?

Aos 76 anos, Irving tem uma relação próxima com o cinema, que já adaptou obras como As Regras da Casa de Sidra (na telona, virou Regras da Vida, que lhe rendeu o Oscar de roteiro adaptado), Hotel New Hampshire e, principalmente, O Mundo Segundo Garp, romance que, lançado em 1978, estabeleceu Irving como um dos mais importantes prosadores americanos da atualidade. Mais: reforçou a então insípida discussão sobre transgênero ao apresentar Roberta Muldoon, ex-jogador de futebol americano que se transformou em um das mulheres de Garp.

Autor de obras que conciliam loucura e tristeza e que surpreendem o leitor pela forma corriqueira com que apresentam o inusitado, Irving respondeu por e-mail às seguintes questões.

É verdade que Avenida dos Mistérios começou a ser escrito há cerca de 25 anos e, originalmente, era um roteiro para um filme? Neste caso, como o roteiro se transformou num romance?

Um roteiro original acaba se transformando em um romance por duas razões: por um ou outro motivo, ele não é aproveitado e, como fica parado na mesa do escritor por longo tempo, ele acaba regressando à história. Comumente o que acontece é que você começa a criar o personagem 20 anos antes ou depois da época em que a história que está escrevendo se desenvolve, isso num roteiro.

Acrescente a essa perspectiva da passagem de tempo a esse roteiro e você tem então um romance. Um dia, retornando da Cidade do México, vindo de um circo nas montanhas fora da cidade, imaginei a figura de Juan Diego como um homem mais velho; no roteiro, ele era sempre (e apenas) uma criança. Esse roteiro começou na Índia e abordava crianças num circo indiano; mas as autoridades do governo indiano censuram filmes feitos na Índia por estrangeiros. O diretor e eu sabíamos que havia outro país em que muitos artistas de circo, os únicos em situação de risco, são crianças, que era o México. Deixamos a Índia e ambientamos a história no México.

Existem elementos de realismo fantástico na história, o que nos remete ao boom literário latino-americano das décadas de 1970 e 1980. O senhor foi um leitor desse tipo de história?

De fato, há elementos de realismo fantástico nos meus romances anteriores. Não gosto desse termo “realismo fantástico”. Gosto de mágica, mistério, fantasmas e espíritos, de premonições sobrenaturais. Oração para Owen Meany é um romance de milagres; há fantasmas no meu livro Em Uma Só Pessoa. Oskar Matzerath (do livro O Tambor, de Gunther Grass) deseja não crescer e cresce. O Tambor é anterior a Cem Anos de Solidão. Existem fantasmas em Shakespeare e em Dickens. A baleia branca em Moby Dick é uma criatura fantasma. Eu me interessei pela literatura fantástica muito antes de ler García Márquez.

Gosto muito de Cem Anos de Solidão, mas não extraí o fantástico da minha obra do boom literário latino-americano, mas de Hamlet, de Macbeth. É de onde vêm Miriam e Dorothy. O sobrenatural sempre esteve vivo no mundo literário.

O senhor se considera um escritor político ou acha que os escritores são seres inevitavelmente políticos?

Escrevi 14 romances; menos da metade eu chamaria de políticos, ou temas sociais. Sempre começo com uma história e os personagens – se eles requerem uma visão política, tudo bem, mas nunca me predisponho a escrever um romance político ou social. Mesmo no caso de Regras da Casa de Sidra, ou Uma Oração para Owen Meany. No primeiro, estava interessado em um órfão não adotado – o que sucede com ele? Em um orfanato onde o médico realiza abortos, o órfão aprenderia como. Em Owen Meany, estava interessado no efeito causado a uma pessoa que perde um amigo de infância. Como a guerra do Vietnã era a causa da morte do seu amigo, o tema é político. A política entra na história e na vida dos personagens depois.

A propósito, o senhor poderia comentar sobre o que acha do governo Trump?

Eleitores ignorantes não é uma exclusividade dos Estados Unidos. O isolacionismo, a xenofobia, o fascismo estão em ascensão, veja a Europa. Gostaria que Trump fosse o único. Em sua total vulgaridade, talvez seja. Mas infelizmente lideranças como a sua estão se tornando mais comuns em todo o mundo. Minha visão da política está clara nos meus romances. Você sabe o que penso de Trump.

O senhor se considera religioso? Acredita existir uma firme base religiosa em sua obra?

Não sou religioso. E também não sou ateu. Não afirmo saber o que está “fora daqui”. Não sei. Sou cético. Criei uma situação em Owen Meany que, se eu a presenciasse, teria me tornado uma pessoa religiosa. Mas não, foi apenas na minha imaginação. Não acho que devemos dizer às pessoas em que elas devem acreditar. E nesse aspecto, os verdadeiros crentes e os ateus são iguais – eles fazem pregações para você.

Que tipo de relacionamento existe entre escritores e os personagens que criam?

Os bons personagens, os únicos que nos perseguem, não desaparecem; na ficção eles retornam como outros personagens, mudando apenas ligeiramente.

AVENIDA DOS MISTÉRIOS

Autor: John Irving

Tradução: Léa Viveiros de Castro

Editora: Rocco (448 págs., R$ 69,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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