Num belo poema, John Donne, o metafísico escocês que enriquece com sua inspirada e nobre poesia e literatura de língua inglesa, escreve: “Nenhum homem é uma ilha,/completo em si./Cada homem é uma parte do continente/ uma parte do todo./ Por isso, a morte de qualquer homem / me amesquinha/pois faço parte da humanidade./Portanto, nunca perguntes / por quem os sinos dobram:/ eles dobram por ti”.

O que Donne proclama, em termos poéticos, considerando o todo mais importante do que a parte, o coletivo mais significativo que o individual, numa perspectiva, portanto, de ampla solidariedade humana, é de certa forma contestado por Kafka. Sua obra talvez seja a “suma” radical do individualismo, o cântico patético do sofrimento do homem só, isolado na ilha misteriosa do seu solipsismo interior.

Não há como negar, logo de início: o grande individualista que é Kafka pode ser considerado o épico por excelência do absurdo, o rapsodo singular da absurdez. Suas narrativas estranhas, feitas de processos e metamorfoses, por vezes incompletas, como a sinfonia de Schubert, ou imperfeitas, com as capelas do mosteiro da Batalha, parecendo edifícios sem alicerces e sem paredes, escadas íngremes sem degraus, pontes aéreas sem pilares, são a odisséia do sem-sentido. Se não o ápice do cripticismo literário, em toda a história da literatura.

Mas atenção: não há nada de fácil nem gratuito no absurdo kafkiano: ele é a resultante da dissolução, da fragmentação, do estilhaçamento da realidade em face do impacto avassalador do desespero ontológico quase demoníaco. Pois não é o desespero o pecado dos pecados?

O seu absurdo, pois, nada mais é do que uma nova estruturação do real no seu conjunto orgânico, já que os detalhes permanecem inalterados no seu realismo original.

A ficção kafkiana desenrola-se, assim, sob o signo da absurdidade onipresente, que chega às raias de um surrealismo histérico e fantástico. Estranhamente, porém, o grande judeu checo de língua alemã – que Sartre chega a chamar de Pai da Literatura Moderna -, misto de artesão contido e prestidigitador mágico, vai entrecendo a teia do seu absurdo com fios de lógica sutil, de racionalidade incólume, na sua morfologia e sintaxe. O mundo em equação que o autor de O processo, O castelo e A metamorfose patenteia é um mundo inverossímil de estranheza e tragédia, em que Deus, ausente – ou talvez “morto”, como pretendia Nietzsche – é substituído pela presença do Nada transcendente. É um mundo em negativo, quando não às avessas, em que se multiplicam “adinfinitum” os labirintos e as encruzilhadas, no qual a comunicação entre os homens é precária, pois os próprios diálogos lembram diálogos de surdos.

Como considerar Kafka? Profeta do caos? Apóstolo da decadência? Visionário, intérprete de um tempo brechtiano de “fezes e traição”, um tempo em que se preparava, em surdina, a gestação da grande hecatombe de 39/45? Ou simples sismógrafo de uma sociedade doente, a caminhar rapidamente para um simulacro prévio do Apocalipse verdadeiro?

Se, como pretende Georg Lukçás, o romance é a forma dialética do épico, a forma da solidão na comunidade, da esperança sem futuro, da presença na ausência, a que melhor condensa o choque entre o homem e o mundo, o indivíduo e a sociedade, é evidente que poucas obras se enquadram no esquema lukácsiano como a de Kafka.

Situando-se nos antípodas de um Zola, ou mesmo de um Flaubert, de um Balzac ou de um Dickens, que buscam desvendar – e desventrar – a realidade, sobretudo a realidade humana, com exatidão plena, com “ostinato rigore” quase científico (realista/naturalista, portanto), o autor de Cartas a Milena, América e dos Diários busca algo difernte. Busca antes distorcer, transfigurar (expressionisticamente?) o real concreto, que funcionan como catapulta para uma supra-realidade grotesca, onírica, ou melhor, de pesadelo.

Gritos de protestos contra as engrenagens que violentam, estrangulam e desumanizam o homem, esse funcionário público do mundo, a obra de Kafka pode ser considerada um epitáfio e um réquiem para um organismo e um sistema irremediavelmente putrefatos.

Consciente da sua trágica missão de “mensageiro sem mensagem”, Kafka, utilizando as cores sombrias da sua paleta, pinta e realiza aquilo que pode ser chamado de “fenomenologia do invisível”, que nos remete para quele universo de cifras intraduzíveis de que falou o mestre de A náusea. E é desse modo que, no final de contas, Kafka acaba por contestar Donne. Ao contrário do que disse o poeta, o romancista foi sempre – e assim se sentia – uma ilha misteriosa, perdida na sua insularidade congênita, não tanto física, mas espiritual.

A verdade é que, kafkianamente – e antidonneanamente – todo homem é, sim, uma ilha. Esta passa, morre, desaparece, esfuma-se no espaço e no tempo. Mas o Arquipélago, feito de ilhas incontáveis – vale dizer, a humanidade – continua. Os sinos de Donne, afinal, dobram também por Kafka. Pois sua vida, mais do que qualquer outra, foi a tragédia de um espírito aprisionado no cárcere noturno da carne. “Ad aeternam”.

João Manuel Simões, poeta e prosador. Da APL, do CLP e do IHGP. Autor de 40 livros (de ensaio, poesia, crítica, contos, crônicas e pensamentos).

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