São muitas as histórias de pessoas que resgataram cães vadios das ruas, mas raras as de um cão que tirou delas um artista marginal. O artista inglês John Dolan, 43 anos, ex-presidiário e dependente de heroína, deve tudo a George, de fato seu melhor amigo. Hoje com sete anos, o Staffordshire bull terrier não precisa mais ficar mendigando trocados na calçada da Shoreditch High, uma rua do East End de Londres em que ele e seu dono passavam o dia inteiro para juntar algumas moedas da refeição diária.

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John ficava desenhando George, que tinha diante dele um copinho de papel com o seguinte bilhete: “Pode tirar meu retrato do modo que você quiser, mas, por favor, coloque uma moeda ou duas dentro do copo ou posso morder você”. As pessoas, de modo geral, achavam George simpático e atendiam seu pedido. Se alguém mais generoso deixava £ 10 no copo, seu dono retribuía a gentileza com um desenho do cachorro.

Fama

George, o cão sem-teto, ficou famoso na vizinhança. Todos faziam festinha para ele, que, embrulhado em trapos velhos, mal podia abanar o rabinho. A famosa dupla Gilbert e George, que tem seu ateliê também no East End londrino, sempre parava para cumprimentar o outro George e John, hoje um artista em ascensão com sua primeira individual fora da Inglaterra – marcada para o fim deste ano, em Los Angeles.

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É o primeiro fruto do sucesso de sua primeira exposição, em setembro de 2013, na galeria Howard-Griffin, sobrenome do proprietário e amigo Richard, que tirou John Dolan e George das ruas ao conceder a ele um adiantamento, introduzindo o artista no mercado de arte londrino.

A mostra foi um sucesso, garantindo um retorno de £ 50 mil, e a história rendeu o livro autobiográfico John & George – O Cão Que Mudou Minha Vida, que está sendo lançado pelo selo Fábrica 231, da Editora Rocco.

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Cão no inverno. De Londres, por telefone, o autor contou sua história ao Caderno 2. Cauteloso e um tanto desconfiado como costumam ser viciados em heroína e ex-presidiários, John solta-se aos poucos, especialmente quando fala de arte, embora mantenha certa cautela ao tocar no passado. Preso várias vezes por roubo, John sente vergonha em admitir que era para pagar os traficantes, após ver cortado o benefício social (£ 36 semanais) que garantia comida e acomodação temporária num buraco da rua Royal Mint.

A vida já andava péssima quando John encontrou um jovem casal em igual situação, no rigoroso inverno de 2009. Ele, então, morava sozinho nessa quitinete (do Serviço Social) na Royal Mint, perto da torre de Londres.

Desempregado, finalmente havia conseguido um teto após dormir anos ao relento. Becky e Sam, o casal de jovens que conheceu no metrô de Tower Hill, mendigando trocados, estava, diz ele, “precisando de uma trégua”. Becky, mais desequilibrada, certo dia topou na rua com um escocês alcoólatra que lhe ofereceu um bull terrier em troca de uma garrafa de cerveja. Ela topou o negócio com pena do bicho, deixando George de herança para John ao arranjar outro apartamento para morar.

Ele aceitou o cão, mas teve trabalho para treiná-lo. É possível imaginar o terrier, ex-guia de um escocês bêbado pelas ruas, saindo em disparada louca com seu novo dono, que tentava inutilmente segurar o cão na coleira – “e ainda por cima com uma artrite miserável”. O tornozelo piorava sensivelmente no inverno, mas John, afinal, não podia segurar as muletas e o cão ao mesmo tempo. Tentava manter o bicho ocupado com uma bola de tênis, que George não largava nem por decreto. O terrier, com marcas de maus-tratos, era totalmente diferente de Butch, o velho vira-lata companheiro do artista entre os 10 e 23 anos.

Não que a vida de Butch tenha sido melhor. Por essa época, John morava num conjunto habitacional de King Square em Islington, semelhante ou pior que as habitações populares de Arnold Circus, por onde passou. O pai, lixeiro, e a mãe, faxineira, nem tinham tempo para ver os desenhos que John fazia – “e eu sempre fui um desenhista compulsivo, desde criança”. O pai, ao chegar em casa, mudava automaticamente de canal – “não vou ver essa merda!” – só para contrariar o filho, e colocava os pés na mesa, sempre com uma cerveja ao lado.

Tédio

Longas tardes se passaram no apartamento da família Dolan com o pai “apagando” depois de tomar uma caixa inteira de cerveja, enquanto a mãe fazia faxina fora. O pequeno John passava o tempo desenhando. Entediado, escapuliu certa noite e foi com um amigo incendiar um carro no estacionamento ao lado do prédio onde morava. Foi pego em flagrante por dois policiais. Ainda por cima, acabou descobrindo que seu pai não era seu pai nem sua mãe, a mãe verdadeira. Eram seus avós. A “tia” Mary era, de fato, a sua mãe.

Não por coincidência, Mary tinha um namorado chamado Jimmy Dolan e, obviamente, não estava preparada para criar um bebê sozinha, aos 16 anos. O resto da história já foi contada em mais de um filme de Kenneth Loach, o especialista em classe operária e famílias disfuncionais da Inglaterra – com certeza o nome certo para adaptar sua autobiografia.

Ele, porém, não escreveu sua história para virar filme. Diz mesmo que nem pretende escrever outro livro. Gosta mesmo é de desenhar. Se resolveu contar sua saga foi só para “alertar outros jovens” sobre o que significa viver na rua, esmolar sob a chuva, dormir ao relento, roubar para comprar drogas e perder os dentes por causa do vício.

Sonho

John tem um sonho: continuar dormindo num lugar decente e fazer carreira como artista. Não lhe interessa tanto o dinheiro – “vivo sem ele há muitos anos”. No entanto, gostaria de ver algum dia um desenho seu ao lado dos “grandes” na Royal Academy ou mesmo na Tate. Fã da pintura de Jackson Pollock, ele, no entanto, prefere continuar fiel à figuração. Foi também essa perseverança que atraiu a atenção do marchand Richard para seu trabalho. Ele o viu pela primeira vez reproduzido num livro chamado Shoreditch Unbound, ao lado de trabalhos de Tracey Emin e da dupla Gilbert e George. Levou um ano depois disso para fazer uma oferta a John – “provavelmente para ver se eu não desistia, se era persistente”.

John desenhava os prédios e a paisagem urbana do East End, chamando a atenção de outros artistas de rua com Thierry Noir, Stik e Pablo Delgado. Tal afinidade não escapou ao marchand do artista, que convidou alguns deles para “interferir” nos desenhos de Dolan, leituras quase arquitetônicas de uma Londres cinzenta, sem cor. “Nunca desejei ser arquiteto”, diz. Não tinha grande senso de orientação. Era tão ruim em Geografia que “só por milagre conseguia achar o caminho de casa”.

O artista passou a ser muito requisitado após a primeira exposição na Howard-Griffin. Aceita encomendas, mas não gosta de desenhar retratos. O que lhe dá prazer, admite, é mesmo retratar George – e saber que seu livro foi lançado no Brasil, “país que só conheço por causa das crianças abandonadas e do futebol”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.