Milhares de quilômetros separam Cancún, festejada cidade do balneário mexicano, da Barra da Tijuca, elegante bairro carioca. Mas, na difícil formação do jovem Joel, a distância é quase inexistente. Joel é o protagonista de Cancún, primeiro romance de Miguel Del Castillo, que já havia publicado contos em Restinga – as duas obras são editadas pela Companhia das Letras. A narrativa se divide em oito capítulos, que se alternam na descrição de dois momentos vitais na vida do rapaz: quando ele está com 12 anos e duas décadas depois, quando está prestes a ser pai.
Os mistérios da paternidade unem as duas épocas. Adolescente, Joel vive nos condomínios e shoppings da Barra, local onde a felicidade é estilizada – tornou-se famosa a réplica de gosto duvidoso da Estátua da Liberdade, na entrada de um centro comercial. Já o pai vive de negócios nebulosos em Cancún, cidade repaginada para atrair mais turistas. Eis aí o primeiro ponto que aproxima Cancún da Barra: são lugares ‘criados’ com a função de dar prazer
E, como uma moeda, que tem duas faces, os dois lugares têm também seu lado B, mais sórdido, perigoso, nada glamouroso. Uma zona obscura que reflete a relação de Joel com o pai e que volta à tona quando ele, aos 32 anos, na iminência do nascimento de seu primeiro filho, decide viajar para Cancún em busca de dados que clareiem o mistério envolvendo o pai que, nessa época, já está morto.
“O interesse de Joel é comum nos homens que se tornam pais”, comenta Del Castillo, que tem dois filhos. “As dúvidas sobre a criação, ou mesmo sobre o legado que vai ser passado, convivem com sua reflexão sobre como foi a sua própria relação com seus pais.” Tal pensamento é bem expresso pelo autor ao escolher como epígrafe um trecho do livro O Africano, do francês J.-M. G. Le Clézio, que lembra que “todo ser humano é resultado de pai e mãe”.
Del Castillo trabalha com dúvidas que parecem eternas. O jovem Joel é atormentado por questionamentos sobre sua masculinidade e sobre sua fé, enquanto o personagem já adulto busca respostas para questões que, acredita, terá no futuro. Para isso, o escritor utiliza o narrador em terceira pessoa para os capítulos envolvendo o menino e em primeira pessoa, quando o tempo está avançado. “São metáforas. Quando pensa no presente, Joel usa a primeira pessoa, pois os acontecimentos estão mais próximos.”
Presença evangélica
Para combater as lacunas que surgem ao longo de sua vida (a falta de um pai mais presente, a demora da chegada da puberdade, a inabilidade em relacionamento amoroso), Joel, personagem do romance Cancún, se aproxima da religião – mais precisamente de uma igreja evangélica. Embora já frequentasse semanalmente com a mãe quando menino, é adolescente que ele sente a necessidade de participar de um grupo de jovens de denominação evangélica.
É lá que Joel encontra um pouco de consolo em relação às dúvidas sobre a relação com o pai: “Na reunião do último sábado das férias de julho, a mensagem é sobre uma oração em que Jesus chama Deus de ‘Aba’, o que, segundo o pregador, quer dizer algo como ‘paizinho’, explicitando uma relação íntima”, escreve Miguel Del Castillo, adentrando um terreno pouco explorado na literatura brasileira: oferecer uma representação dos evangélicos.
Segundo ele, a maioria dos escritores sempre preferiu ignorar a presença de personagens com algum cunho religioso – seja por opção mesmo, seja pelo fato de alguns serem ateus. “Uma das poucas exceções é Chico Buarque, em uma cena de Leite Derramado”, comenta o autor, lembrando da personagem Maria Eulália, uma convertida.
O fato de também ser evangélico permite ao escritor transitar com tranquilidade pelo discurso, o que surge para o leitor na descrição das conversas dos jovens, além de cultos e retiros. E, da mesma maneira com que um cristão tem familiaridade com, por exemplo, os rituais de uma missa, portanto dispensando descrições, Del Castillo não é didático em sua narrativa, despreocupando-se em detalhar o passo a passo de uma cerimônia.
A religião, na verdade, provoca em Joel as mesmas angústias que um rapaz de sua idade teria ao se submeter, em tenra idade, às exigências de qualquer crença. Assim, ao respeitar a “santidade” (que é não se masturbar tampouco fazer sexo antes do casamento), Joel só vê agravar seu sofrimento físico.
Trata-se de uma opção inteligente, especialmente nos dias atuais, em que a polarização política contamina outras áreas do pensamento. Momento em que também é forte a presença religiosa na forma de comando do País, o que provoca discussões acaloradas. “Estamos vivendo um momento muito maniqueísta no Brasil. Sempre que tentamos olhar uma questão a fundo, a realidade se impõe, e o livro também busca tratar disso”, comenta o escritor.
Já adulto – e agora distante da religião -, Joel encara outras questões, mas íntimas. Próximo do nascimento do filho, seu pai morre, o que levanta as diversas dúvidas que sempre deixou guardadas. Assim, disposto a encontrar as respostas (e, principalmente, conquistar a paz interior), Joel decide viajar para o México, em busca de rastros deixados pelo pai. “Esse lado da paternidade sempre me interessou”, comenta Del Castillo. “Essa condição de ser filho e ser pai, o legado que ganhamos deles e, principalmente, as histórias que os pais não nos contam.”
Esse jogo de aparências serve para, novamente, aproximar Cancún do Bairro da Tijuca, a ostentação que tenta encobrir as falhas, as verdades que não se sustentam e as certezas encobertas. “Esse momento do romance traz um olhar para o outro e também para sim mesmo. A revelação de que o que a gente viveu acaba construindo nosso perfil. Joel descobre isso no pai e percebe também em si.”
Um dos jovens talentos apontados pela revista britânica Granta em 2012, Miguel Del Castillo confirma a aposta, como apontam seus pares. “Detendo-se em temas como o percurso emocional de uma masculinidade introvertida e a difícil relação que podemos ter com as condutas censuráveis de quem mais amamos, Miguel Del Castillo conduz o leitor com firme serenidade por um relato impecavelmente estruturado, no qual a família é a expressão imperfeita e acolhedora dos mistérios da vida”, observa o também autor Daniel Galera.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.