Ao saber que a gravadora Odeon não faria festa alguma para lançar seu disco Quem É Quem, em 1973, João Donato disse um “tudo bem” ressentido. Ouvir “não” era quase regra em seus 39 anos de vida, mas aquele merecia resposta. Seguindo o conselho do amigo Jota Canseira, colocou todos os LPs que podia em uma caixa, ligou para a TV Globo avisando de um “evento diferente” e subiu até o Outeiro da Glória. Assim que sentiu a movimentação dos repórteres, tirou os LPs das capas e os lançou um por um pelo céu do Rio de Janeiro. “Aquilo ia longe, rapaz. Você tinha que ver”, diz Donato, quase 80 anos de idade, 41 depois de terminar Quem É Quem, um dia antes de, enfim, fazer a festa do lançamento que sonhou.
O álbum que a Odeon desprezou e que só gravou por insistência de Marcos Valle, que o produziu, é considerado por Donato como um dos melhores de sua carreira e, por Valle, como aquele que impediu que o pianista partisse novamente para os Estados Unidos. “Ele queria voltar para lá, estava desiludido do Brasil”, conta Marcos. Por duas noites, nesta quinta-feira, 27, e sexta-feira, 28, no Sesc Pinheiros, Quem É Quem será mostrado faixa a faixa, pela primeira vez no palco. O show idealizado pelo jornalista Ronaldo Evangelista tem carga de teor explosivo. Donato ao piano acústico ou ao Fender Rhodes, Marcos Valle em outro teclado, Tulipa Ruiz e Mariana Aydar como convidadas em algumas canções e o afro latin groove do Bixiga 70 fazendo o paredão de suingue devem dobrar os pouco mais de 30 minutos de música gravada no álbum. “Vai ter muito improviso entre os temas”, conta Donato.
O pianista recebeu a reportagem no saguão do hotel Golden Tulip, em São Paulo. Com uma folha de sulfite nas mãos, tinha dez ou doze tópicos anotados para o ano de 2104. Assim que o gravador foi ligado, começou a ler um por um, como se quisesse engolir o mundo: 1) o lançamento de um disco com o filho Donatinho; 2) o lançamento de sua biografia, escrita pelo jornalista Antonio Carlos Miguel; 3) a estreia de uma série de quatro capítulos sobre sua vida feita para o Canal Brasil; 4) uma exposição sensorial da artista plástica Ana Durães e do designer Claudio Fernandes; 5) uma edição limitada de um piano com sua assinatura, feito com madeira do Acre, sua terra natal, pela empresa Fritz Dobbert; 6) desfile na escola de samba Vila Isabel, dia 3 de março; 7) apresentação no Rec Fest, Recife, dia 4 de março; 8) shows nos Estados Unidos, Finlândia, Japão e Rússia; 9) temporada no Lincoln Center, em Nova York; 10) a gravação de um álbum com trechos das sinfonias de Ravel e Debussy, com piano, baixo e bateria.
A lista seguiria além, mas Donato se entusiasma com este último item como uma criança. “É por este disco que meu coração bate mais forte.” O projeto, que ele chama de sua suíte sinfônica popular, deve ser gravado via leis de incentivo neste ano para lançamento em 2015. Vai contemplar trechos de obras dos dois compositores considerados influenciadores da música moderna.
Quando Donato fala, fica tudo mais claro. Ele poderia ter vivido tudo o que vive hoje aos 25 ou aos 35 anos, mas o mundo não o entendeu. Quando cansou de levar não de donos de boate, que consideravam sua música estranha demais para estar no palco de suas casas, partiu para os Estados Unidos em busca de compreensão.
Chegando lá, foi arranjar emprego no Bando da Lua, de Carmem Miranda, e o que houve? “Consideraram minha música muito estranha.” Os músicos de Carmem o acharam “americanizado demais”, a forma como decodificava suas influências de Johnny Alf, e partiram para Las Vegas, deixando-o só. Quando decidiu voltar ao Brasil, descobriu que não tinha dinheiro.
Mesmo depois de se firmar no Brasil, quando Quem é Quem o apresentou ao mundo dos intérpretes, Donato ouviu de gente grande que ele se tratava, no fundo, de um compositor de uma música só. “Almir Chediak me disse isso.” Então, se é autor de uma só canção e o resto são variações sobre o mesmo tema, qual seria esta canção? “Lugar Comum, que o Gilberto Gil colocou a letra. Ouvi esta música na beira do Rio Acre quando era criança, alguém passou assobiando em uma canoa (assobia o tema da música). Eu era uma criança e, pela primeira vez, senti saudade não sei do quê. Ali nasceu tudo.”
O que ele tem a dizer sobre sua economia de notas é o seguinte: “Eu sou a favor do menos. Quem toca 200 notas por minuto faz uma exibição de atletismo. A música requer silêncio, em vez de uma cascata de notas que você pode adquirir facilmente treinando. A música em si é feita de som e silêncio. Entre um som e outro existe um espaço, e muita gente preenche este espaço. É como quem fala sem parar, aquilo muitas vezes te deixa desinteressado. Você acaba dizendo sim para uma pessoa que fala muito e emenda uma história na outra, mas na verdade não está nem ouvindo o que ela diz. Enquanto que com o outro, que diz ‘olha…. (faz longa pausa)’…
Nesse espaço, nessas reticências, você sente muita coisa. O que ele vai falar? Será que está bravo? Assim, você presta muito mais atenção nas músicas quando elas têm silêncio.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.