Tudo se resume ao segundo ato. A tragédia que nasce do choque entre o destino pessoal e a convenção social, com uma música que, de cores quase expressionistas, preenche de humanidade o espaço entre os dois extremos: a essência da Jenufa, de Janácek, está representada no encontro, sobre o palco, das duas protagonistas, Kostelnicka e Jenufa. E o mesmo vale para a montagem apresentada ao longo da semana passada pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

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Na história, que Janácek adaptou do texto de Gabriela Preissová, Jenufa se apaixona pelo mulherengo Steva. Kostelnicka quer livrar a enteada da vida de sofrimentos para a qual, acredita, ela se encaminha. Se há preocupação genuína, há também a sombra da frustração de sua própria existência. Mas Jenufa acredita: ela acabou de ter o filho ilegítimo de Steva. A falta de diálogo entre as duas é palpável. E leva Kostelnicka a matar a criança, um dos momentos mais assustadores da história da ópera. Em especial porque, em seguida, vemos Jenufa, que nada sabe, às voltas com o sonho de amor por Steva. E também porque fica claro um dos temas principais da ópera, a ideia de que a mulher existe apenas como projeção do desejo masculino. Se Steva não a quer, então Jenufa deve ser oferecida a Laca; mas, ele a aceitaria sabendo do bebê?

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Tudo isso, enfim, se dá no segundo ato. Não que haja algo de errado com o primeiro ou o terceiro ou com a concepção dada pelo diretor André Heller-Lopes. Neles, a ação se passa no espaço público; no segundo, porém, a cena acontece no espaço íntimo da casa de Kostelnicka e, por que não, dentro do universo de traumas e desejos dela e da enteada. E é nesse momento que o jogo de sombras da iluminação, a claustrofobia da cenografia, a leitura do maestro Marcelo de Jesus e a hábil direção de atores combinam-se de modo mais eficaz.

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E é aqui também que as duas protagonistas da história vivem seus melhores momentos. A Kostelnicka da soprano Eliane Coelho é um dos mais impressionantes trabalhos de construção de personagens da história recente da ópera brasileira. Por sua vez, Gabriella Pace, ao interpretar Jenufa, sai-se bem na mudança em direção a papéis mais pesados. Destaque ainda para a atuação de Eric Herrero como Laca, formando, ao lado da mezzo Carolina Faria, como a avó, o quarteto principal da montagem.

Crise

É difícil pensar na Jenufa fora do contexto em que a produção subiu ao palco. Há, de cara, um problema emergencial: os músicos da orquestra e do coro, servidores estaduais, estão trabalhando com meses de salários e benefícios atrasados. Mas, além disso, é preciso lembrar que a nova gestão, nomeada há cerca de um mês, com Heller-Lopes como diretor artístico, começa o trabalho em meio a velhos e conhecidos vícios: a troca de comando no teatro foi motivada por acomodações políticas e o secretário de Estado da Cultura, André Lazaroni, em suas primeiras declarações, questionou abertamente a vocação do Municipal como palco de óperas, balés e concertos, alegando a necessidade de popularização do espaço. Mais: após o cancelamento da agenda preparada pela gestão anterior, ainda não há uma temporada, cujo anúncio foi adiado indefinidamente. Jenufa é um grande espetáculo. Mas celebrá-lo não pode significar esquecer os enormes desafios que se tem pela frente – e o fato de que a nova gestão ainda tem que mostrar, com fatos concretos, a que veio.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.