Exatamente como há 11 anos, com “Pain Couture by Jean Paul Gaultier”, na Fundação Cartier, esta retrospectiva no Grand Palais (até 3 de agosto) realiza a façanha de ser, ao mesmo tempo, repleta de ideias impertinentes e vazia de conteúdos pertinentes. Por felicidade, o inquieto e curioso estilista afirma “não se considerar um artista”. Melhor assim. O seu eclético trabalho de quatro décadas, apesar da originalidade e inventividade, não pode mesmo ser chamado de arte. As 175 peças apresentadas, algumas inéditas e audaciosas, não raro são resultado de puro e afetado capricho. Começam e terminam na própria e frívola extravagância.
Gaultier quer se mostrar tão interessante e sedutor como pessoa, quanto as suas invenções. Consegue. O primeiro objeto da mostra é Nana, o urso despelado e esfalfado da sua infância, objeto primordial de tortura, antecessor das suas modelos. O pobre, que abre a exposição, é a prova “viva” de quão cedo o estilista caiu nas redes da alta costura. O bicho, que provavelmente foi de pelúcia, recebeu implantes, cabelos de corda, camadas e camadas de maquiagem com os produtos da avó do dono e, para terminar, a costura dos famosos seios cônicos que depois vestiram Madonna. Hoje, os museus precisam de estrelas para ter sucesso.
Não surpreende que instituições prestigiosas desenrolem o tapete vermelho a celebridades vindas de outros campos. Björk, no MoMA de Nova York, David Bowie na Filarmônica de Paris, Bob Wilson e Lady Gaga no Louvre, Gaultier no Grand Palais… espetáculos fetichistas atraem multidões. Esta exposição multimídia com cenografia feérica, para a qual contribuíram dezenas de profissionais em várias áreas, e que o costureiro considera não como uma retrospectiva mas uma “obra” em si, celebra não apenas a audácia da moda. Explora igualmente a cultura e a contracultura enquanto fontes de fascínio e inspiração. Por meio de um percurso temático em oito segmentos, traça um itinerário imaginário que se inicia nas ruas de Paris e vai até o universo da ficção científica.
Toda a parafernália da imagética gaultieriana está ali, em conjunto com os seus desvios, transgressões, metamorfoses e reinterpretações. Desde as célebres marinheiras e criações étnicas, até o kilt e os mesmos vestidos-corselete criados para as estrelas. Gaultier suprime as fronteiras entre as culturas, mas também entre os sexos. Cria uma nova androginia ou, de modo oposto, diverte-se invertendo códigos para uma moda hiper sexualizada.
Da alta costura ao prêt-à-porter dos anos 70 até hoje, vemos as roupas para teatro e cinema de Almodóvar, Greenaway, Besson, Jeunet. Passamos por espaços interativos, retratos, croquis e documentos pessoais; assistimos a filmes, concertos, espetáculos de dança, videoclipes, programas de televisão. Testemunhamos os primeiros anos do estilista, a Odisseia, Punk Cancan com Catherine Deneuve, As Musas – uma instalação criada pelo Studio Moment Factory de Montreal, na qual cada espectador pode ser “Gaultierizado”. Atravessamos estandes de nomes sugestivos como O Salão, À Flor da Pele, Metropolis e Floresta urbana, videoinstalação criada pelos jovens artistas Lucie & Simon. Um lugar importante é dado à fotografia da moda, evidentemente, com tiragens às vezes inéditas de Warhol, Cindy Sherman, Lindbergh, Avedon, Pierre et Gilles, Doisneau e tantos outros.
Tudo é emblemático de uma só marca. Tudo é relativo à “dissipação do mundo contemporâneo que nos afasta definitivamente da transcendência”, como dizia Jean Baudrillard. Ocorre com o trabalho de Gaultier. O resultado é “uma equação nula, sem diferencial”. Na ausência total de transcendência espiritual, na falta de finalidade simbólica e objetivos – e apesar da decisão de parar o prêt-à-porter – a sua criação fica destinada a se reproduzir indefinidamente, de maneira interminável. E a se lançar em órbitas vazias, mesmo quando se apresenta no Grand Palais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.